Àquela altura, Itamar Assumpção acordava mais cedo do que nunca, ainda no vazio da madrugada, antes das quatro e meia. Teria que correr muita cidade para chegar de sua casa, na Penha, ao estúdio no Butantã onde Naná Vasconcelos, vindo de Recife, o esperava diariamente, lá pelas nove.
Era 2001 e os dois estavam em pleno processo de criação de um trabalho em parceria, sob um espírito de integração que Naná definiria depois como “o som dos dois foi modificado pelos sons dos dois”.
“Isso Vai Dar Repercussão”, o álbum resultante, chegou às lojas só em 2004. Itamar nem sequer o viu publicado. Morreu em 2003, dois anos depois das gravações.
À margem dessas sessões, no entanto, um vasto material foi produzido -muito além das modestas sete faixas registradas em “Isso Vai Dar…”. E é daí que vem a maior parte das 26 canções que agora, seis anos após a morte do artista, passam por processo de produção para gerar dois discos inéditos.
Eles vêm fechar a trilogia iniciada em 1998 com “Pretobrás -Por que que Eu Não Pensei Nisso Antes…”, o último álbum lançado por Itamar em vida.
Devem sair em meados de 2010, dentro da “Caixa Preta” -projeto que remasteriza, reedita e encaixota toda a obra do cantor, 12 CDs, sob o comando de sua filha Anelis Assumpção. A ideia original é do próprio Itamar, que já alimentava o desejo de ver sua obra novamente disponível.
Inéditas
A Folha teve acesso a todo esse material. Registradas por Itamar em esquema voz e violão, as faixas inéditas vão ganhar novas camadas instrumentais, sob a batuta dos produtores Paulo Lepetit (que já havia produzido o álbum em parceria com Naná) e Beto Villares (Zélia Duncan, Céu, Rodrigo Campos).
São basicamente canções em que Itamar assina sozinho letra e música. Mas há dobradinhas dele com seus principais parceiros, como Alzira Espíndola e Alice Ruiz (leia ao lado a letra de “Devia Ser Proibido”).
A maior parte delas é totalmente inédita. Outras já foram gravadas anteriormente, mas nunca por Itamar. É o caso de “Código de Acesso”, registrada por Zélia Duncan em seu disco de 1998. Ou “Mulher Segundo Meu Pai”, que já frequenta os shows e deve estar no álbum de estreia de Anelis.
A filha de Itamar optou por ter dois produtores para o segundo e terceiro capítulos de “Pretobrás” para que “o inesperado aconteça”. “O Beto tem um ouvido completamente virgem em relação ao meu pai”, ela diz. “É o oposto do Paulinho, que é envolvido com ele inclusive emocionalmente.”
“O barato de ter dois produtores não é a unidade, mas sim o contraste”, afirma Lepetit. Ele toca com Itamar desde os tempos do teatro Lira Paulistana, na década de 80, e pretende resgatar para o novo trabalho um tanto daquela sonoridade. Para isso, convocou a Isca de Polícia, banda da qual faz parte e que serviu de apoio a Itamar já em seu álbum de estreia -o disco clássico “Beleléu Leléu Eu” (1980).
Em outras faixas, vai contar novamente com a participação de Naná Vasconcelos. O músico pernambucano afirma que não pretende bisar o clima orgânico dos arranjos de “Isso Vai Dar Repercussão”.
“Aquela coisa [orgânica] já foi, já está feita”, ele diz. “Penso agora na tecnologia das coisas. Isso porque tenho certeza de que seria assim que a gente faria se o Itamar estivesse aqui.”
Villares, que nunca trabalhou com Itamar mas se diz seu fã desde os 14 anos, revela que pretende usar a família do cantor para encontrar os caminhos para sua produção.
“Espero tê-los não como guia, mas como parceiros na busca da (in)definição artística, que é como funciona sempre nessa relação com os artistas”, diz. “O Itamar, a simplicidade e a inconsequência criativa são as referências.”
Hiperatividade
É fundamental, no entanto, que seja mantido o clima profundo, de dor calada, que se esconde e se revela nos tapes originais, com Itamar se acompanhando ao violão.
Ele estava com muita pressa em 2001. Vinha lutando contra um câncer no intestino havia dois anos e já sofria a terceira das seis operações que, até sua morte, tentariam lhe extirpar o tumor. Nada fazia grande efeito. Muitas vezes chegava ao estúdio vindo direto de sessões de quimioterapia. Sentia que seu tempo escorria.
Começou a produzir em ritmo alucinado. Assim que levantava da cama -depois de, se tanto, quatro horas de sono-, descia para o pequeno escritório, no andar de baixo de sua casa, que chamava de estúdio.
Ali, via o dia clarear apegado ao violão, ao teclado do computador, ao telefone. Muitas vezes, ligava para seus amigos àquela hora e os arrancava da cama para que ouvissem as canções nascendo.
Chegava a compor três músicas inteiras antes de sair para o estúdio ao encontro de Naná, como se toda a vida que ainda lhe restava pudesse caber, espremida, no tempo daqueles versos, daqueles acordes.
“Ele trazia coisas novas todos os dias”, lembra Naná. “Parecia mais interessado em me passar as músicas que tinha composto naquela madrugada do que em ouvir o que eu tinha feito com as do dia anterior.”
Itamar estava fragilizado e produzia muito para exorcizar a dor e se sentir forte, inteiro. “Ele não admitia a doença”, conta Zena Assumpção, sua viúva, ainda emocionada.
“Nunca reclamou. Quando sentia muita dor, só me pedia: “Traz pra mim aquele remedinho”. Tomava e, assim que passava a fase aguda da dor, voltava a trabalhar de novo.”
Era preciso contar uma história. O tempo, ele não sabia, corria a seu favor.