O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco completa um mês amanhã (13). Não podemos deixar de repetir a pergunta – quem matou Marielle? – e de exigir uma resposta.
Para além de uma investigação séria, que aponte e julgue os culpados por este e tantos outros assassinatos de defensores de direitos humanos, a resposta a essa pergunta passa também por uma reflexão sobre quem foi Marielle e o que representa não apenas sua execução, mas também sua presença no cenário político-institucional da cidade do Rio de Janeiro.
Há pelo menos quatro décadas, a imagem de cidades partidas entre “centros” e “periferias” oferece um paradigma para descrever a segregação socioterritorial de nossos municípios. Entretanto, essa imagem não dá conta de apontar todas as dimensões dessa separação e, especialmente, da natureza da violência que perpassa essa configuração.
Nesse período, pouco avançamos para revelar que essas cidades têm cor e gênero, e que esses elementos não são secundários, “subordinados” ou consequências do que seria a clivagem principal entre bairros “ricos” e bairros “pobres”. E mais: embora também saibamos que há uma diferença permanente entre a presença – e a qualidade – dos serviços públicos nos distintos bairros da cidade, esta falta de equidade por parte do Estado vai muito além da ideia de “ausência”. Na verdade, trata-se de uma presença estigmatizadora, racista e violenta.
No Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, por exemplo, 30% da população é formada por mulheres negras, enquanto no Jardim Paulista, elas são 4,92%. Os moradores do distrito da zona sul também têm a menor expectativa de vida da cidade, 55,7 anos, contra 79,4 anos dos que vivem na área nobre da zona oeste. A taxa de homicídios no Jardim Ângela foi de 19,83 pessoas a cada 100 mil em 2015, a quarta maior da capital do estado.
Em agosto do ano passado, o então recém-empossado comandante da Rota – a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo –, afirmou, em entrevista ao UOL, que os policias que atuam no bairro dos Jardins se comportavam de maneira diferente daqueles que trabalhavam nas periferias da cidade. Essa fala sintetiza o dispositivo estigmatizador, racista e violento a que nos referimos acima. A existência – e permanência – de periferias e favelas é marcada, no imaginário das cidades e na realidade das políticas urbanas, como uma espécie de zona cinzenta, um território em suspensão sobre o qual não podemos – jamais! – afirmar se são provisórios ou permanentes, legais ou ilegais, detentores de direitos ou excluídos da ordem.
Não é inocente ou indiferente a imensa presença de negros neste lugar. Embora a escravidão tenha sido formalmente abolida há mais de um século, o racismo que a sustentou, e que foi a base de toda a ocupação colonial do país, está muito longe de ter sido superado. Desta forma se constitui a “bomba” do genocídio – cotidiano – que opera nos territórios populares: a combinação da transitoriedade permanente desses locais e do estado de indefinição de sua inserção na cidade com a presença de uma população, não branca, cujas vidas valem menos.
O atual gatilho detonador desta bomba se chama “guerra às drogas”. Trata-se de uma estratégia seletiva contra o tráfico e uso de entorpecentes, que criminaliza territórios inteiros, fornecendo a justificativa para o tratamento diferente e reforçando a configuração desses lugares, bem como de seus moradores, como inimigos, sujeitos, portanto, aos mais diversos níveis de arbitrariedade, remoções e despejos violentos, destruição de casas e redes sociais de existência, e, no limite, ao encarceramento e à morte.
É exatamente isso que acontece todos os dias na Maré, de onde veio Marielle, mas também na Cracolândia, em São Paulo, e nas milhares de favelas, periferias e ocupações Brasil afora, onde, aliás, vivem a maioria dos moradores das cidades do país.
Evidentemente, esta política urbana racista e estigmatizadora contribui de forma decisiva para impedir uma parte da população – humilhando-a e subtraindo-lhe a humanidade (é disso que se trata o racismo) – de se constituir como sujeito político na esfera pública, de levantar sua voz e se fazer respeitar no mundo da política. Foi exatamente este o “crime” de Marielle, o que a tornou vítima de um assassinato covarde: ousar furar estes bloqueios e afirmar que ela e todas as meninas e mulheres negras moradoras dos territórios populares do Brasil podem, sim, elevar a voz e ousar governar o país.
O assassinato de Marielle expõe as contradições de um sistema que exalta a meritocracia e diz que a cor e a origem pouco importam diante do esforço individual. Alçar um espaço na vida pública não foi suficiente para impedir que ela fosse morta.
Antes de ocupar o cargo de vereadora na Câmara Municipal do Rio, onde fazia parte da comissão que monitorava a intervenção federal militar na cidade, Marielle atuou na CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa, quando era assessora parlamentar do deputado estadual Marcelo Freixo. Passado um mês de sua morte, pouco se avançou na solução do caso. Mas a própria Polícia Civil do Rio de Janeiro vê indícios de que o crime teria sido realizado por pessoas treinadas, como policiais. Se isso se confirmar, podemos ver indícios de que é justamente através da ação de paramilitares que este recado é dado para todos que ousam lutar contra as estruturas de poder.
Sua morte, porém, não será mera estatística. As milhares de Marielles que puderam furar parte dos bloqueios e emergir como sujeito – graças, inclusive, a políticas de ação afirmativa e de redistribuição de renda que hoje estão sendo objeto de ataque feroz – não se calarão. Sua presença no espaço político nos fará, certamente, mexer naquilo que os projetos políticos até o momento não quiseram – ou não puderam – enfrentar.
*Gisele Brito é jornalista. Em 2013, foi condecorada com o 17° Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos, promovido pela Comissão da Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Assembleia Legislativa de São Paulo, e com o Prêmio Compromisso com a Superação do Racismo e em Defesa da Igualdade, oferecido pela Afropress.