Porque dia 21 janeiro é o Dia Nacional de combate à Intolerância Religiosa

Por Silvana Suaiden

Mãe Gilda, sacerdotisa do Candomblé, morreu de infarto fulminante ao ver sua imagem estampada na capa da Folha Universal (da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus). A foto que trazia sua imagem acompanhava a manchete “Macumbeiros charlatões enganam fiéis”. A justiça condenou a IURD – em última instância – a indenizar os herdeiros da sacerdotisa.

Instituído como lei federal (11.065/07) para lembrar a morte da Iyalorixá Gilda do Ogun, o dia 21 de janeiro não é uma comemoração, mas um memorial, uma oportunidade de refletirmos e desenvolvermos ações para combater a intolerância em nossa sociedade.

Se o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa começou a fazer parte do calendário é porque temos a intolerância como uma característica sócio-cultural que deve ser combatida em todas as suas expressões. E quando analisamos a religião, chegamos ao ponto nevrálgico e central do que é uma sociedade. Esta não se entende sem a religião. Como dizia Durkheim, a religião é fato social. A religião (seja admitida ou proibida) concentra e expressa o ethos, o ser mesmo de um indivíduo ou grupo humano, com suas crenças, valores morais, utopias, desejos e modelos de vida que costumam ser tão religiosos quanto sociais e políticos. O Brasil é um país plural. A diversidade (da qual faz parte uma infinidade de expressões religiosas) é marca característica de sua constituição. No entanto, isso não garante que a tolerância e a boa convivência estejam presentes.

Assim como a intolerância religiosa, as outras formas de intolerância como a de gênero ou a homofóbica e as que se manifestam no campo ideológico, social ou das diferenças étnicas… estão ligadas a concepções de vida, de poder e a crenças. Todas elas vêm da mesma estrutura de sociedade piramidal e patriarcal que se constitui como organizadora de relações violentas, ou seja, de relações hierarquizadas (e aqui há uma noção de ordem sagrada) onde uns são tidos como superiores e mais humanos que outros porque são homens, brancos, cristãos, patrões, heterossexuais… ou porque detêm o saber ou os bens econômicos de um povo. Para que essa estrutura social de poder e dominação de uns sobre outras/os possa ser perpetuada, é necessário que se acredite que, naturalmente ou por instituição sagrada, uns são superiores a outras/os. Daí é que nascem as diversas formas de preconceito e discriminação; nascem para desqualificar ou inferiorizar o/a outro/a. Inferiorizar o outro é uma forma eficaz de dominá-lo, legitimando, desta forma, que isso é aceitável porque ele/a não é um igual. Nossa história brasileira é um amargo testemunho dessa estrutura.

Da mesma maneira que a história da humanidade nos últimos milênios é uma história de dominação de uns sobre outros, a chamada Conquista das Américas não foi outra coisa que um processo extremamente violento da colonização europeia e capitalista. E isso não foi feito sem a imposição de uma religião tida como universal e superior às outras. A imposição da religião católica, ou melhor, determinada interpretação desta que predominava na época, foi fundamental para tomar posse das terras e das riquezas do continente, assim como para legitimar a escravidão e o massacre de povos inteiros. Tudo em nome de Deus! Conquistar almas e dar ao rei novos súditos consistia em um mesmo processo. Para poder escravizar e despossuir africanos e povos indígenas, foi preciso demonizar o outro e, consequentemente, sua religião. Infelizmente, esse foi o nosso aprendizado histórico e cultural.

Assim, aos poucos, todos foram acreditando que a cultura do dominador europeu (com sua religião, seus costumes e valores, sua ciência, sua arte, sua música e seu modelo de sociedade…) era mesmo superior. A morte da mãe Gilda é um exemplo de que ainda hoje esse esquema funciona. No centro e norte do Brasil, latifundiários e gente do poder político tem levado para as cidades vizinhas de aldeias indígenas Igrejas fundamentalistas que demonizem a religião dos povos originários. Cresce a sua marginalização e pobreza. Associado a isso, a violência no campo tem obrigado a muitos indígenas a abandonar suas terras. Sem o espolio material e espiritual dos povos dominados, não teríamos visto tamanho sucesso do capitalismo.

A intolerância surge também do medo e da disputa pelo poder. O medo cresce com o individualismo e com a nossa incapacidade crescente de viver a alteridade (ou seja, a capacidade de conviver com os diferentes em relações de diálogo e inter-dependência). Em uma cultura que vive sob o impacto da imagem (e esta com expressões cada vez mais violentas, tanto no conteúdo quanto na sua forma), a perda da capacidade de escuta e, portanto do diálogo, é cada vez maior. Com a perda do diálogo e das possibilidades de convivência que ele propicia, vem o desconhecimento e o medo do outro. Trata-se do medo de que o outro se mostre superior, de que ele domine.

Por outro lado, a diferença serve de espelho para que cada grupo se veja também como o veem de fora. E isso gera medo e insegurança. Ainda hoje, vemos profundas manifestações de preconceito e demonização da religião do outro e, portanto, de toda diferença. Se no campo político a democracia ainda é um ideal, no universo religioso a sua ideia ainda precisa ser incorporada.

Em uma sociedade de mercado como a nossa, a tendência de várias expressões religiosas é seguir pela hegemonia do grupo. Assim se entende a teologia da prosperidade (aquela que afirma que Deus dá segundo os méritos de cada um e que, portanto, ser rico e bem sucedido é um sinal de recompensa divina ) e o discurso de demonização das outras religiões: atendem à mesma estratégia agressiva de marketing e de disputa pelo mercado, só que agora, no campo religioso. Por isso é que um pastor chuta a imagem da santa em pleno horário nobre na televisão ou ataca as religiões de matriz africana. Para afirmar-se como sagrado, é preciso atacar o concorrente, ainda mais quando a disputa envolve possibilidades de lucro financeiro. O conceito de sagrado aqui se alia à ideia de reinado absoluto ou de domínio do mercado. No mundo evangélico há várias Igrejas que seguem essa lógica, assim como ocorre em alguns setores da Igreja Católica. O aprendizado vem do empresariado, da estratégia de concorrência capitalista, e não da intuição básica e original da religião cristã.

Não se pode negar que a religião tem sido, em muitos casos, uma canalização ou um gatilho da violência vivida na sociedade brasileira. Esta mesma sociedade que acredita não ser violenta o é de forma histórica e estrutural. Em outras palavras, a violência que vivemos não é fruto da periferia das grandes cidades, nem é um surto social e tampouco é apenas aquilo que a TV mostra de forma espetacular: o crime de alguns indivíduos indesejados que devem ser aniquilados da sociedade.

O problema é que não somos conscientes de nossa violência estrutural em suas diversas formas e expressões, sobretudo no cotidiano. E a mídia tem colaborado muito para isso. Por isso muita gente ainda não vê violência no discurso intolerante do religioso que busca na bíblia o fundamento para suas ideias homofóbicas; é por isso que tem muita gente que não vê violência na apologia ao estupro feita pelo humorista ou na discriminação das mulheres em muitas religiões. Muitos acham natural que assim seja. Poucos enxergam que o Brasil, país mais católico do mundo, mata por ano, no cotidiano, mais gente que a guerra do Iraque e Afeganistão ou que a guerra do Vietnã.

Assim como pode ocorrer também na área científica, ideológica ou na política, um dos problemas que levam à intolerância no universo religioso é o fundamentalismo. O fundamentalismo religioso manifesta-se, sobretudo, nas religiões que se baseiam em um texto sagrado, mas não só. Ele traduz-se em uma forma de interpretar ou ler um texto ou uma tradição sagrada de forma literal, dogmática, sem considerar o contexto em que tais expressões surgiram. O olhar fundamentalista fecha o mundo do indivíduo em uma ordem por ele pré-estabelecida, previne contra outras leituras possíveis e pode gerar a violência em suas diversas formas, do preconceito contra outras expressões religiosas até às práticas de massacres étnicos. Temos um triste exemplo de suas consequências na inquisição e no holocausto dos judeus. Embora também outros motivos tivessem influenciado na perseguição nazista aos judeus, não se pode negar que a leitura fundamentalista dos textos bíblicos, desde os primeiros séculos da cristandade, teria levado ao ódio àqueles que teriam condenado Jesus à morte. Ora, tanto Jesus como quase todos os cristãos nas primeiras décadas do cristianismo eram judeus. Os estudos mais recentes atestam que os evangelhos não podem ser tomados como biográficos e que o Império Romano tinha autonomia e a principal responsabilidade na determinação da condenação dos judeus à cruz. O fundamentalismo favorece, pois, uma leitura religiosa simplista e desprovida de elementos científicos, de forma a sustentar ideologicamente determinado comportamento social, em geral, intolerante com cosmovisões complexas e diferentes.

Para quem se interessar, sugiro o maravilhoso filme Apenas um beijo – direção de Ken Loach e ganhador do prêmio Ecumênico do Júri no Festival de Berlim (2004).

Fonte: Blog do Nassif

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