Pós-colonial: a ruptura com a história única

Resumo: O objetivo desse artigo é responder a pergunta: “O que é o pós-colonial?” Sem a pretensão de abarcar a totalidade dos seus significados, proponho-me a reunir o pensamento de alguns dos seus principais intérpretes e, através deles e das diferentes perspectivas que eles vislumbram chegar a uma definição objetiva, que tenha em seu conteúdo a abrangência e a importância do conceito pós-colonial. O ponto de convergência que se destaca entre os autores elencados é o afastamento das formas binárias de oposição e de explicação do colonialismo e do pós-colonialismo, que se tornam insustentáveis diante do processo de transculturação

Por Rosane Vieira Pezzodipane, do Periodicos

1. Apresentação

Dois entendimentos têm orientado o conceito pós-colonial: como tempo histórico, posterior aos processos de descolonização do “Terceiro Mundo”, o que remete a ideia de superação do colonialismo e de estarmos vivendo, portanto, uma era pós-colonial, ou, como contribuição teórica dos estudos literários e culturais, produzidos em universidades da Inglaterra e Estados Unidos, a partir dos anos de 1980, que se consolidou como crítica ao colonialismo. É nesse sentido de crítica que manteremos a ênfase desse ensaio, na tentativa de apreender dos autores os pontos relevantes que a sustentam. Na revisão e no diálogo com os textos a resposta à pergunta inicial que dá título a esse ensaio será respondida pelos próprios autores.

2. O conceito pós-colonial

O argumento central e consensual dos estudos pós-coloniais, assim como a sua maior contribuição é, sem dúvida, a ruptura com a história única, sustentada pelas metanarrativas que legitimaram as ideologias do processo de colonização, naturalizando a dominação do homem pelo homem, a partir das diferenças raciais hierarquizadas como justificativa para o “processo civilizatório”. Nessa perspectiva, acreditamos ser oportuno recorrer ao discurso de Césaire.

O que é em princípio a colonização? Reconhecer que ela não é evangelização, nem empreitada filantrópica, nem vontade de fazer retroceder as fronteiras da ignorância, da enfermidade, da tirania, nem a expansão de Deus, nem a extensão do direito; admitir de uma vez por todas, sem titubear, por receio das consequências, que na colonização o gesto decisivo é o do aventureiro e o do pirata, o do mercador e do armador, do caçador de ouro e do comerciante, o do apetite e da força, com a maléfica sombra projetada por trás por uma forma de civilização que em um momento de sua história se sente obrigada, endogenamente, a estender a concorrência de suas economias antagônicas à escala mundial.2

A vocação do pós-colonial, como discurso inédito, é o comprometimento político com a crítica ao colonialismo e com a desconstrução do seu discurso. Nas palavras de Homi Bhabha (2012): “precisamos do pós-colonialismo para nos mostrar a experiência completa da descolonização.” São as narrativas dos autores, na discussão de suas próprias histórias que vão sustentar essa crítica. Tendo vivenciado a experiência colonial e os processos brutais que ela impõe: a dominação, a desumanização, a realocação, a perda de identidade, a diáspora, o preconceito racial, a tortura, a banalização da vida, enfim, toda a insensatez que a natureza humana em desequilíbrio pode acionar, eles se tornam porta-vozes legítimos do pós-colonial.

[…] toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e de pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ele emerge em formas culturais não – canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art ou para além da canonização da ‘ideia’ de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social.3

O que o pós-colonial tem evidenciado e que merece uma revisão de conceitos é que, o confronto das relações transversais que se estabelecem no universo colonial vai tornar as fronteiras dessas relações mais permeáveis, exigindo a resignificação de algumas categorias, em especial aquelas que acolhem os binarismos simplistas da interpretação imediata das relações entre os atores. Desse modo, as categorias colonizador/colonizado, metrópole/colônia vão estar em suspensão. Sahlins afirma que:

[…] A prática, antes, possui sua própria dinâmica – uma estrutura de conjuntura – que, significativamente, define as pessoas e os objetos que dela tomam parte. E esses valores contextuais, quando diferentes das definições culturalmente pressupostas, têm então a capacidade de atuar sobre os valores convencionais. Acarretando relações sem precedentes, entre os sujeitos atuantes, mutuamente e em relação a objetos, a prática acarreta objetivações sem precedentes de categorias.4

Albert Memmi, escritor e professor nascido na Tunísia, de origem judaica, em sua obra Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1977), nos fornece um vasto material para o estudo da dinâmica da relação colonizador/colonizado e da subjetividade que a permeia. Ele observa que, o laço entre colonizador e colonizado é destruidor e ao mesmo tempo criador: “[…] destrói e recria os dois parceiros da colonização, colonizador e colonizado: um é desfigurado em opressor […], o outro em oprimido. Ele conclui: há, em todo colonizado, uma exigência fundamental de mudança.” 5 Em outra perspectiva, Franz Fanon, vai reforçar o argumento da transculturação e de como as categorias podem ser afetadas pelas contingências. Em Os condenados da terra (1961), o autor denuncia o processo brutal da colonização francesa na Argélia, que teve como consequência a destruição de uma sociedade que se desenvolvia economicamente de forma autóctone e teve esse processo interrompido para dar passagem ao imperialismo europeu. Foi no exercício de suas funções, como médico psiquiatra de um hospital do exército, durante a guerra pela libertação, que Fanon vai desenvolver o seu estudo. O autor descreve as patologias psiquiátricas geradas por esse contexto, muitas delas irreversíveis. A tortura foi um dos elementos causadores de grande parte das neuroses de maior complexidade, que marcou de forma definitiva aqueles que a praticaram. O que fica evidente em seu trabalho é que, os distúrbios decorrentes da situação de conflito afetaram igualmente dominadores e dominados. A violência internalizada pelas duas partes, ora se voltava contra o colonizador, afetando a esfera particular de sua vida, ora contra o colonizado, na medida em que ele passa a reproduzir essa violência. As relações entrecruzadas passam a ser condicionantes para a incorporação e troca de “papéis.”

Stuart Hall em sua obra: Da diáspora: identidades e mediações culturais (2009), ao pensar o significado e os limites do pós-colonial, enfatiza a importância de se interpretar as novas relações e disposições de poder no processo de descolonização. Segundo Hall, a utilidade do conceito pós-colonial é: “descrever ou caracterizar a mudança nas relações globais que marca a transição (necessariamente irregular) da era dos Impérios para o momento da pósindependência ou da pós-descolonização…”6

O autor entende que a colonização não foi um fenômeno externo às metrópoles imperiais e sim um processo subjacente tanto às sociedades colonizadoras como as colonizadas, transformando decisivamente tais sociedades pelo processo de transculturação que impossibilita um retorno às pluralidades culturais originais.

Em razão dessa realidade, Hall ressalta a necessidade de um afastamento dos binarismos explicativos na nova conjuntura, o que levaria a manutenção da concepção da diferença, e esta é uma das mais importantes contribuições do pós-colonial. A oposição das categorias metrópole/colônia já não consegue dar explicações para a diversidade cultural percebida no processo de descolonização ou de pós-colonização. Segundo Hall, o termo pós-colonial não é restrito à descrição de uma sociedade ou época em especial, ele é muito mais abrangente, na medida em que faz uma releitura da colonização como parte de um processo global, considerando a sua característica transnacional e transcultural, suas especificidades e relações transversais e dinâmicas, o que explica a sua reescrita diaspórica e global das grandes narrativas imperiais do passado, e são essas características que concedem o seu valor teórico e que fazem com que o “local e o global se plasmem.” 7

O autor enfatiza que a descolonização foi um processo longo, gradual e diferenciado e que a persistência dos efeitos da colonização, internalizados na própria sociedade colonizada, vai dar surgimento a uma forma difusa de hegemonia colonial que através de novos arranjos, oportunizados pelas crises ‘internas’ dos Estados e sociedades pós-coloniais, vão resultar na continuidade dos processos de poder e dominação. A Guerra do Golfo seria um exemplo de que a luta pela descolonização está “inconclusa”. Outro intérprete do pós-colonial, Homi Bhabha, em sua obra O local da cultura (1998), nos apresenta uma importante contribuição no entendimento do conceito pós-colonial, ao apontar algumas de suas principais perspectivas:

A crítica pós-colonial é testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e social dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das ‘minorias’ dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma ‘normalidade’ hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povos. Elas formulam suas revisões críticas em torno de questões de diferença cultural, autoridade social e discriminação política a fim de revelar os momentos antagônicos e ambivalentes no interior das ‘racionalizações’ da modernidade. Para adaptar Jurgen Habermas ao nosso propósito, podemos também argumentar que o projeto pós-colonial, no nível teórico mais geral, procura explorar aquelas patologias sociais – ‘perda de sentido, condições de anomia’ – que já não simplesmente ‘se aglutinam à volta do antagonismo de classe, [mas sim] fragmentam-se em contingências históricas amplamente dispersas’.

O autor trabalha com o conceito de contingência, que passou a ser muito valorizado nos estudos pós-coloniais, para fundamentar sua crítica às teorias totalizantes e universalistas. Bhabha propõe um afastamento do conceito de cultura como totalidade de conteúdos canônicos e propõe a sua visão de cultura como “uma produção desigual e incompleta de significação e valores, muitas resultantes de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato de sobrevivência social. (…) No pós-colonial, a cultura é transnacional e tradutória”. Transnacional porque há um deslocamento em razão da complexidade das fronteiras culturais e políticas, e tradutória porque as histórias de deslocamento e a subjetividade que delas decorrem vão demandar uma expansão no conceito de cultura que o tornam bastante complexo.9

O autor sugere uma passagem da cultura como epistemologia, como tendência a uma totalidade, para cultura como “lugar enunciativo” que seria um processo mais dialógico e liberal, com possibilidades de abarcar os deslocamentos e realinhamentos, resultados de articulações culturais e do hibridismo cultural alternativo. Da articulação do presente enunciativo com a cultura resultaria a transformação do “outro objetificado” em “sujeitos de sua história e experiência.” 10

O presente enunciativo “é o espaço cultural para a abertura de novas formas de identificação que podem confundir a continuidade das temporalidades históricas, perturbar a ordem dos símbolos culturais, traumatizar a tradição.”

O pós-colonial, destaca Bhabha, ‘resiste’ a formas holísticas de explicação social ao reconhecer a complexidade das fronteiras culturais e políticas no ‘vértice’ das esferas políticas opostas. O seu “impulso revisionário” atua na desconstrução das pedagogias nacionalistas ou ‘nativistas’ que pensam a relação do Terceiro Mundo com o Primeiro Mundo a partir de uma estrutura binária de oposição. “Os discursos críticos pós-coloniais exigem formas de pensamento dialético que não recusem ou neguem a outridade (alteridade) que constitui o domínio simbólico das identificações psíquicas e sociais.” 12

Finalmente, Aníbal Quijano (2010) traz uma contribuição decisiva aos estudos pós-coloniais ao desenvolver o conceito de colonialidade, para explicar a continuidade das relações de poder dos países do Primeiro Mundo sobre os países do Terceiro Mundo nas diferentes esferas societárias:

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a, Colonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é obviamente, mais antigo, enquanto a Colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que o colonialismo. Mas, foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade do mundo tão enraizado e prolongado.13

A colonialidade do poder explica, igualmente, a dinâmica do poder dentro mesmo do âmbito local de jurisdição, sob os auspícios de uma concepção hierarquizada da humanidade, naturalizada historicamente para atender aos objetivos econômicos e políticos de um mundo em transformação, em que, indivíduos “superiores” exploram, expropriam, negam e se prevalecem da condição, muitas vezes miserável, de seus “inferiores”.

3. Considerações finais

A reflexão sobre o conceito pós-colonial, em primeiro plano, apresenta-se como a desconstrução das metanarrativas do discurso colonial, tão bem sintetizado por Césaire. Num segundo plano, o pós-colonial é a revisão dos binarismos contidos nas interpretações dicotômicas que desconsideraram a importância da ação humana como elemento transformador no processo das inter-relações e seus desdobramentos. No entanto, a subjetividade se impôs como fundamento na explicação da multiplicidade das relações que as contingências do processo colonial engendraram nas histórias cruzadas que marcaram a modernidade e o capitalismo.

A importância dos estudos pós-coloniais na modernidade tardia se legitima pelo entendimento que, a independência dos Estados-nação não significou o fim da era colonial. A dominação das metrópoles hegemônicas se atualiza em novos arranjos institucionais e em processos persistentes na manutenção dos benefícios que os países subalternos podem representar, na perspectiva de um neocolonialismo.

Nesse sentido, o pós-colonial tem um vasto campo de estudo para o seu desenvolvimento. Interpretar as condições de colonialidade dos países subalternos, a partir da colonialidade do saber é uma denúncia de vital importância, uma crítica conscientizadora que pode levar à esperança de concretização do movimento decolonial (Torres, 2005) e ao sonho de um caminho de autonomia econômica, política e social que foi negado aos países colonizados.

Como paradigma não convencional, não fundacionista, o pós-colonial pressupõe um espaço de liberdade essencial, que se por um lado pode incorrer no risco de acolher algumas distorções no discurso, por outro lado é capaz de congregar uma multidisciplinaridade crítica que venha a se consolidar em propostas efetivas para um desenvolvimento mais igualitário para a América Latina, assim como para todas as sociedades que ainda se encontrem sob o jugo colonial. Na ruptura com a história única reside a grandeza do pós-colonial que, como discurso político, aceitou o desafio de reescrever a história através das vozes silenciadas. Talvez esse fato possa explicar a recusa de alguns e as críticas que o cercam.

 

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Pós-colonial: a ruptura com a história única

 

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