No dia 16 de novembro, na semana da Consciência Negra, cerca de 40 pessoas lotaram uma das salas do Departamento de Antropologia da UnB (Universidade de Brasília) para assistir à conferência do professor Arivaldo de Lima Alves, docente da Uneb (Universidade do Estado da Bahia) e pesquisador de temas como relações raciais, gênero e cultura. A mesa abriu a programação da sexta edição do evento Negras Antropologias, organizado pelo Coletivo Zora Hurston, grupo de estudantes negros do programa de pós-graduação.
A presença de Ari, como é conhecido, marcava também o retorno dele, 24 anos depois, à instituição onde concluiu doutorado e para a qual se transformou num símbolo histórico de enfrentamento ao racismo.
Primeiro aluno negro do doutorado em antropologia da UnB, Ari é uma figura icônica da universidade. Em 1998, ele foi também o primeiro reprovado na disciplina Organização Social e Parentesco, obrigatória do programa de pós-graduação. Sem justificativa concreta para a nota baixa, o então doutorando moveu um processo interno para reverter o quadro considerado um caso de racismo institucional.
Anos depois, aquela situação inédita motivou a elaboração do projeto de cotas etnicorraciais na universidade que, em 2003, se tornou a primeira instituição de ensino superior federal a implementar a política afirmativa para negros e indígenas. Desde então, esses grupos passaram de 4,3% para 48% do total de alunos da universidade, de acordo com dados de 2019.
A volta de Ari Lima ao DAN, na semana passada, no entanto, foi interrompida por um novo episódio ofensivo que ganhou repercussão no meio acadêmico e na internet. Ali, diante da plateia, ele fora questionado tardiamente por uma colega de profissão e professora do departamento sobre “narrativas do que passou”, em tentativa de desconstrução daquele episódio histórico.
Novo ‘julgamento’
“Temos algumas diferenças em relação à interpretação dos fatos.” Foi assim que a professora Kelly Silva interpelou Ari em plena conferência, durante a abertura da conversa para perguntas do público.
Com um caderno de anotações à mão, Kelly fez ponderações à fala do colega sugerindo que a reprovação dele não havia se dado por questões raciais. Ela chegou, inclusive, a citar que outros dois estudantes já haviam também reprovado na mesma matéria.
“Como colega do Ari, eu sempre soube que as coisas eram mais complexas do que isso”, afirmou Kelly. Os dois ingressaram na pós-graduação da UnB concomitantemente.
“Nem de perto, minha trajetória de mulher negra neste departamento — em que fiz mestrado e doutorado e depois ingressei como professora — se aproxima dessa experiência de profunda violência que possa ser vinculada a uma questão racial”, disse a antropóloga, comentando também a fala de outro estudante negro, que havia dado um depoimento sobre situações de racismo na instituição.
Para Kelly, porém, a violência como aquela narrada pelo rapaz e, consequentemente, a que Ari passou é “própria do processo de disciplinamento do corpo e da mente” que prepara profissionais para certo “modus operandi do trabalho acadêmico”, mas que, segundo a professora, não está “relacionado a raça”.
A fala da docente foi interpretada como tentativa de intimidação e constrangimento pelas pessoas que estavam presentes. O discurso foi interrompido imediatamente.
Em resposta à colega, Ari disse que, de fato, foi seu amigo e “muito próximo” no período em que estudaram juntos, mas que, “em algum momento a gente se distancia, infelizmente”. Ele ainda resgatou as situações de racismo que passou ao longo do processo de revisão da nota, incluindo a fala de um professor que se referiu a ele como “um baiano”, em tom pejorativo — fala presenciada pela própria Kelly.
“A questão racial, a negação, ela nunca vem clarividente. Ela sempre aparece com vários outros nomes e com vários outros textos”, resumiu Ari Lima.
Todo o diálogo da conferência foi gravado e transmitido no YouTube do Coletivo Zora Hurston. O vídeo rapidamente se espalhou em grupos WhatsApp e na internet, disparando uma série de críticas à atitude da professora e ao próprio departamento.
Repercussão
O episódio do DAN fez estudantes e ex-estudantes relembrarem outras situações de racismo na instituição. “Em 2016, dois professores indigenistas do departamento se sentiram à vontade para pedir que estudantes indígenas tivessem que passar por uma avaliação de proficiência em língua portuguesa para entrar no mestrado e no doutorado”, lembra uma pessoa que estuda no departamento. Ela não quis se identificar com medo de retaliação. “Tem algumas coisas legais que podem estar em jogo, aí precisamos de cautela.”
Em carta assinada coletivamente, ex-alunos repudiaram a situação num “momento oportuno e esperado de reparação e enfrentamento de um trauma que marcou Ari, o Programa e muitos de nós”. “Após mais de vinte anos, assusta que a fala de uma professora do departamento, que sabemos não representar uma posição isolada, ignore esse problema, refletindo em corpos docentes quase em sua totalidade brancos e em currículos e disciplinas insuficientes para abordar um tema tão complexo e que nos constitui como nação.”
Dos corredores da universidade, a confusão entrou também nas salas dos docentes. “A UnB é historicamente um ambiente acadêmico racista. O corpo docente do DAN é majoritariamente branco e privilegiado e não quer ter esse status abalado”, critica um professor do departamento, que também pediu anonimato. “A presença do professor Arivaldo era algo incômodo, justamente porque se temia a crítica ao DAN.”
Apesar do tema, afirma outra pessoa que estuda no programa de pós-graduação, “ninguém esperava que fosse acontecer daquela forma”. “O Ari não seria convidado se os organizadores esperassem que ele fosse passar por aquela situação de omissão e violência”, diz.
No dia 22 de novembro, no Instagram, a professora Kelly Silva fez uma publicação se desculpando pelo ocorrido. “Ao mesmo tempo, agradeço a todos e todas que me fizeram compreender os impactos não intencionais de minhas falas e assim propiciaram a expansão de minha compreensão sobre a reprodução do racismo em nossa sociedade”, escreveu. “Como mulher negra, filha da classe trabalhadora e, por isso, também vítima de múltiplas violências, reafirmo meu compromisso com o contínuo aprendizado, autocrítica e ações para construção de um mundo mais justo.”
A reportagem não conseguiu contato com o professor Arivaldo de Lima Alves. Por mensagem, representantes do Coletivo Zora Hurston se negaram a dar entrevista.
A reitoria da UnB se posicionou sobre o episódio. Por meio da assessoria de imprensa, disse ao TAB que “repudia todo e qualquer ato de racismo, violência ou intolerância” e que “tem orgulho de ser pioneira na implantação do sistema de cotas raciais, em 2003”. De acordo com a instituição, não há queixa formal sobre o ocorrido protocolada na Universidade. “Reiteramos a postura de respeito ao direito à diversidade e à liberdade de expressão nos quatro campi da Universidade, dentro das prerrogativas legais.”
O Departamento de Antropologia da UnB também publicou nota após a conferência. O texto, entretanto, não faz qualquer referência direta ao fato, apenas reafirma o compromisso “com políticas de inclusão da diversidade etnicorracial na comunidade acadêmica”. “Com esse espírito de abertura ao diálogo e acolhimento das diferenças em torno de um objetivo comum — o enfrentamento ostensivo do racismo e de todas as formas de discriminação no ambiente acadêmico — o colegiado deliberou pela constituição de uma comissão para elaboração de um programa de reconhecimento, combate e reparação do racismo estrutural no âmbito do DAN, com o objetivo de identificar as práticas e dispositivos que contribuem para a sua reprodução e propor recomendações para o seu enfrentamento.
No dia 21, passou a circular nas redes sociais a imagem de um dos muros do departamento pichado. Em letras garrafais, alguém escreveu: “DAN RACISTA”, numa evidente resposta ao episódio de constrangimento ao qual o professor Ari foi exposto. Em uma publicação no Twitter, uma ex-estudante do curso compartilhou uma fotografia com a legenda “Dpto de antropologia da UnB, capes 7 e máquina de moer preto, que fique registrado o que todes pensamos sobre vocês” (sic), criticava. “Depois da última semana, que não haja dúvida de quem realmente são as ratazanas racistas que trabalham nesse lugar.”