Quando a polícia mata negros no Brasil e nos EUA

Duas pessoas negras na cena. Ambas alvejadas pelo racismo praticado pelo arbítrio e força desproporcional da polícia. Sandra Bland, no Texas, sucumbiu. O estudante Feliz, em Salvador, Bahia, surpreendentemente, sobreviveu. Contudo, não nos enganemos, as polícias, de um modo geral, são extremamente violentas e o Brasil não foge à regra.
Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quase dois terços dos moradores das cidades brasileiras de mais de cem mil habitantes têm medo de sofrer agressão da polícia militar.

Por Cidinha Silva, no DCM 

Especialmente jovens negros, pobres e moradores do Nordeste temem ser assassinados pela polícia. Aquela mesma corporação que nos bairros ricos protege os autodeclarados cidadãos de bem.

Em comum nos dois casos a reação de civis à polícia, utilizando a ferramenta discursiva da garantia de direitos que, ao cabo, irrita os policiais, senhores de armas e vidas. Na situação de Bland, uma reação individual, isolada e sem apoio; no episódio de Feliz, uma resposta coletiva e popular.

Feliz não sabia que a Pick up sem identificação que quase o atropelou era da polícia. Parece que ele, como todo jovem negro que confronta diuturnamente a possibilidade de ser assassinado pela polícia, deveria ter a premonição de que um carro sem identificação, com quatro homens no interior seria da polícia armada que o intimidaria por abrir os braços e indagar frente ao quase atropelamento: quer me matar?

Sim, provavelmente, eles queriam, e só não o fizeram depois da imperdoável afronta no matagal mais próximo, porque a população interveio.

Sandra Bland, por sua vez, não contou com ninguém para defendê-la. Não houve baiana do acarajé que pulasse na frente dos policiais, protegendo o garoto; nem grupo de estudantes que o cercasse e levasse para dentro de uma escola; tampouco diretora, conhecedora da legislação, que se recusasse a entregá-lo aos policiais. Bland também não teve a seu lado uma cidadã solidária, sabedora da forma operativa da Defensoria Pública que a acionasse e esta, por sua vez, mobilizasse a Corregedoria de Polícia, à qual os policiais devem prestar contas.

Ou seja, todo um arsenal entrou em ação, certamente por atuação providencial da espiritualidade, para que Feliz não tivesse o mesmo destino de Davi Fiúza e tantos outros adolescentes e jovens negros que, depois de dar entrada em viaturas policiais, desaparecem como poeira na estrada.

A pequena infração de trânsito cometida por Bland e o provável discurso de sujeito de direitos utilizado para defender-se da polícia do Texas em oposição ao racismo institucional arraigado, levou os policiais a tratá-la com força absolutamente desproporcional resultando em morte.

Existem indícios de que tenham feito montagem com seu corpo, já inerte, para simular registro de entrada na cadeia e que a hipótese de suicídio, apresentada pela polícia, seja falsa. O assassinato de Bland é o cala-boca sombrio para que outros iguais a ela não ergam a voz.

Lá e aqui, a população reage como pode. A defesa popular de Feliz foi um grito de pessoas negras aglomeradas numa praça, cansadas de perder os seus. Foi atitude certeira para impedir que mais um menino negro desaparecesse. As organizações políticas organizam suas marchas, contra o genocídio do povo negro no Brasil, em diversas cidades, instando a população-alvo a reagir.

Nos EUA, a Travessia pela Justiça, 40 dias de marcha a pé, do Alabama a Washington D.C, exigindo mudanças na política de direito ao voto, à educação, ao emprego, bem como novas diretrizes nacionais sobre o uso da força policial e aprovação de uma lei contra as práticas policialescas que perseguem pessoas pelo pertencimento racial.

Constitui diferença significativa nos dois casos, o fato de tratar-se de um homem e uma mulher. Sandra Bland, como Cláudia Ferreira e outras mulheres negras agredidas e mortas pela polícia, destrói o mito de que existe uma violência racial dirigida apenas aos homens.

Está todo mundo no mesmo barco e o próximo alvo pode ser qualquer uma de nós. E ninguém chorará pela gente. Não mereceremos a compaixão devotada ao pobre Cecil, leão morto pela caçada esportiva de dentista branco estadunidense, cujo infortúnio o transpôs do lugar de rei do zoo ao de celebridade midiática.

 

Cidinha da Silva, mineira de Belo Horizonte, é escritora. Autora de “Racismo no Brasil e afetos correlatos” (2013) e “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” (2014), entre outros.

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