Quando eu descobri a negritude

A negritude, um termo cunhado pelo francês Aimé Césaire que pretendia reivindicar a identidade negra e a sua cultura perante a cultura francesa dominante e opressora, é uma verdade que aprendemos sobre o mundo à nossa volta.

Para começar, recordo-me perfeitamente de ter percebido que havia algo de diferente na minha experiência social. Tal é inevitável quando somos nascidos da imigração recente e quando chegamos a um país que nos é estranho e, principalmente, no qual somos estranhos.

Foi no jardim de infância que percebi que era diferente e que isso era mau. Rapidamente entendi que ser negro era algo horrendo e vil e não queria ser associada a tais características, porque me veriam através de uma lente cruel. Então, achei que a solução passava por pintar-me e chegava a casa a exigir aos meus pais que me tornassem “tom de pele”. Eles não sabiam o que dizer.

Fui percebendo, enquanto ia crescendo, que a minha diferença era contraditória com o que era esperado de mim. Quando era das melhores alunas nas turmas em que estava (o meu pai sempre disse que tinha que me esforçar “mais que os outros”) e a minha mãe ia ver as pautas ouvia comentários como “ainda por cima é brasileira” (sendo que não temos nada de brasileiro, não parecíamos só ser “de cá”). Um colega de turma atirou-me, uma vez, a expressão “tu és preta” e isso bastou para que me cobrisse de vergonha, uma simples constatação da realidade exterior, pela maldade com a qual as palavras tinham sido proferidas.

Também nunca senti que podia escolher ser meramente mulher, era sempre bem mais complexo que isso. Quando me apercebia que a experiência tradicional feminina (ou mesmo feminista) me dizia ridiculamente pouco, que as minhas experiências de assédio eram muito diferentes das mulheres à minha volta, pela forma como todas estas características sociais se embrenhavam no que se tornava, por vezes, o medo de andar na rua.

O que foi mais curioso à medida que ia aprendendo sobre o mundo ou, por outras palavras, à medida que fui crescendo, era o quão plástica era a minha posição social: por vezes demasiado clara, outras demasiado escura, demasiado “de cá” ou demasiado estrangeira. Isto força-nos a concluir que todas estas categorias não são mais que socialmente construídas, que são como fumaça que se desfaz no ar quando confrontada com a força da realidade.

Durante muitos anos recordo-me de falar sobre isto e ouvir respostas que diziam que “racismo não existe em Portugal” e que isso “eram coisas dos Estados Unidos”. Chegava à conclusão, portanto, que estava a ser sensível demais e que só podia estar a ficar louca. Não havia outra possibilidade: se eu experienciava algo invisível, não era mais do que um D. Quixote dos tempos modernos a lutar contra o demónio da minha mente.

Decidi ler, só para tirar as teimas. Ainda bem que o fiz, pois foi na educação que encontrei a capacidade de libertação, não só psicológica, mas das cadeias geracionais que estamos a tentar quebrar. Rapidamente se tornou claro que o racismo existia e estruturava a nossa sociedade, mas que quem o sofria não era capaz de falar sobre isso na maioria das vezes. Não só porque se revelam como as pessoas mais flageladas pelo sistema sócio-económico, mas porque também se vêem forçadas a lutar contra a colonização das suas mentes, que sucedeu à colonização dos corpos.

Considero particularmente importante ressalvar que a luta antirracista nunca tratou de criar supremacia de um grupo em detrimento de outro. Não podemos esquecer que a injustiça em qualquer sítio é uma ameaça à justiça em todo o lado.

Da luta contra a desigualdade nasceu uma celebração anual – o Black History Month nos Estados Unidos, conquistado à custa de trabalhos de vidas inteiras. Em Portugal falta fazer esta tradução política e entender como criar reivindicações antirracistas adequadas ao contexto sócio-cultural nacional que consiga conquistar a almejada maioria social.

Porque esta resposta é urgente. É absolutamente angustiante que se tenha de ir à rua para exigir nada mais do que o direito a estar vivo, o direito a existir e a falar.

E desengane-se quem acha que nessas manifestações se ouvem brados de lamento – são gritos de libertação. Esta é uma luta que levaremos até ao fim.

Andreia Galvão
Estudante e ativista da Greve Climática Estudantil.

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