Randall Kennedy, da Harvard Law School, fala sobre o preconceito na política americana
Lúcia Guimarães
Em novembro de 2008, quando milhões de americanos se congratulavam, certos de que haviam dado mais um passo para redimir nas urnas seu histórico pecado original – o racismo -, o dono de uma loja de conveniência em Standish, Estado do Maine, pendurou o aviso: “A Loteria Osama Obama de Espingarda”. A aposta custava US$ 1 e o apostador estaria adivinhando quando o recém-eleito Barack Hussein Obama seria assassinado. O subitamente mais ocupado Serviço Secreto registrou a iniciativa do comerciante mentecapto, uma entre as milhares que tornaram o primeiro presidente negro da história americana um dos mais frequentes alvos de complôs assassinos entre os moradores da Casa Branca.
O incidente é lembrado por Randall Kennedy em seu livro The Persistence of the Color Line: Racial Politics and the Obama Presidency (A Persistência da Divisão de Cor, Política Racial e a Presidência Obama, Pantheon Books, US$ 26,95). Kennedy é professor da Harvard Law School e dono de um currículo acadêmico estelar que inclui uma passagem como analista de processos para o lendário Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro da Suprema Corte americana.
O livro faz o contraponto da euforia que cercou a eleição de Barack Obama com a realidade ainda enfrentada por mais de 12% da população americana. Um país, onde, diz o professor, a elite branca tem “alergia” a reconhecer a persistência do racismo; onde a população carcerária negra passa de 39%; e a direita se sente à vontade para questionar, do privilégio de um cargo eletivo ou do poleiro de comentarista de TV, a legitimidade do presidente.
“O racismo ainda é relevante”, escreve Randall Kennedy, lembrando que o Senado americano só elegeu três negros em toda sua história – um deles, Barack Obama – e não abriga nenhum senador negro hoje. A eleição de Obama, ele conclui, não inaugurou uma era em que os políticos negros se livraram do peso do racismo: “Apenas demonstrou que a seleção racial não impede em termos absolutos a chance de vitória de um candidato presidencial negro”. Em outras palavras, Obama mudou a história por ser eleito. E, prevê o professor, com uma dose de desapontamento, é por novembro de 2008 que ele deve ser lembrado, mais do que por suas ações de governo.
Apesar da escrita sóbria e da argumentação meticulosa característica do pensamento legal, Kennedy se torna mais enfático na conversa ao vivo, quando fura o balão da narrativa nacional que inclui, a seu ver, ficções como “a era pós-racial”. Leia a seguir, a conversa de Randall Kennedy com o Sabático.
Em 2010, o senhor passou uma semana em São Paulo dando um curso sobre ação afirmativa. Como foi a experiência?
Foi muito interessante. Na turma do curso, a maioria dos estudantes era contra ação afirmativa racial. Aqui nos Estados Unidos é o contrário, os estudantes são, geralmente, a favor. Tivemos uma boa discussão. Foi importante falar com gente que parte de outra perspectiva. Uma coisa que me chamou muita atenção foi o grau em que as pessoas negam o que para mim é óbvio, que há estratificação racial no Brasil.
Na introdução do novo livro o senhor critica a noção de que a eleição de Barack Obama sinalizou o começo de um período pós-racial no país. Esta ideia tem perdido defensores. De onde ela partiu?
Pós-racial é uma variação de outro jargão, color blindness (não enxergar a cor). O que existe é este desejo coletivo de se afastar do passado racista. Muitos americanos querem se libertar deste fardo, do sentimento de culpa. Assim como “color blind” pós-racial é uma formulação para atender a este impulso.
Como é que o país vai daquele momento histórico de aparente cicatrização da ferida racial – a celebração na noite da eleição de 2008, no parque de Chicago – para a virulência de caráter racial contra um ocupante da Casa Branca?
Veja, assim como o Brasil, este país é muito grande. As câmeras estavam todas voltadas para o Grant Park de Chicago. Nem todo mundo celebrou. Havia muita gente triste, inclusive na rede Fox, de Rupert Murdoch. A tristeza se transformou em raiva e ressentimento. A eleição foi mais apertada do que pensávamos. Lembro que Barack Obama não levou a maioria do voto branco, apesar de tantos brancos terem votado nele. Mesmo na fase de maior popularidade na campanha, havia um número razoável de pessoas profundamente opostas a Obama. E, francamente, durante a eleição, uma das coisas que ele teve que superar foi o sentimento entre certos negros de que, se ele chegasse perto da vitória, haveria violência contra ele. Obama e sua família foram bravos e aceitaram isto. Você não ouve falar muito destas ameaças a Obama hoje. Mas o medo de que haveria reação violenta existia. Ninguém deve se surpreender com a violência retórica anti-Obama que vemos hoje. Posso argumentar: diante da nossa história, o que me surpreende são os ataques não serem mais abertos. O que acontece de fato, é a linguagem em código. Por exemplo, a controvérsia dos “birthers”, que questionaram a certidão de nascimento do presidente. O Donald Trump, que pagou investigadores para ir ao Havaí e espalhou que Obama teria tirado notas muito baixas para chegar a Harvard. Este tipo de discurso é obviamente racista.
Se o racismo dirigido contra Obama é tão óbvio, porque não é mais denunciado? A mídia americana é tímida neste aspecto?
Sim, com certeza! Temos um par de razões: a elite branca americana sofre ou de ignorância sobre esta realidade ou simplesmente nega, é uma parte do problema. A outra é que o racismo é estigmatizado. É proibido chamar alguém de racista ou até sugerir, a não ser que a pessoa se identifique, “sou racista”. Um sujeito como o locutor Rush Limbaugh, por exemplo, não vai usar a palavra “nigger”, ele não precisa dela para passar sua mensagem. Ao Obama, resta enfrentar esta negação. Ele não tem como dar nome ao problema. E, mesmo se ele denunciar toda esta linguagem em código, vai ser acusado de paranoico e demagogo. E, assim, ele se cala. Naquele incidente durante o discurso para uma sessão conjunta do Congresso, em setembro de 2009, em que o deputado Joe Wilson gritou “Você mente!”, foi preciso Jimmy Carter, um ex-presidente branco e sulista, para declarar em público que aquilo foi uma explosão de ressentimento racial.
O discurso A More Perfect Union (Uma União Mais Perfeita), feito por Obama durante a controvérsia sobre seu pastor Jeremiah Wright, em 2008, é considerado um ponto alto da oratória presidencial americana e um dos melhores exemplos de discurso racial conciliatório. No livro, o senhor expressa reservas sobre o discurso.
O discurso é brilhante. Mas o seu valor reside em demonstrar a perfeita compreensão de um presidente sobre seu público, o público que ele precisa acalmar. Falo sobretudo da audiência de brancos. Como fazer um discurso sobre a ferida racial completamente despido de acusação? Mas o que Obama não pode dizer é exatamente o que o impediria de se reeleger. O eleitor branco americano não tolera o menor tom de acusação. É como uma alergia que se estende até a uma crítica leve sobre a injustiça racial. Eu quero o Obama reeleito. Eu não quero que ele faça o discurso que falta. Prefiro esperar pelo momento em que alguém na Casa Branca possa quebrar o tabu.
No momento, o apresentador de TV Tavis Smiley e o professor de Princeton Cornel West se uniram nas críticas a Obama por não se concentrar nos problemas que afetam de maneira desproporcional a população negra.
Muito do que eles dizem é verdade. Mas o que os dois não levam em conta é que Obama não é um animador de TV. Não é um acadêmico falando num seminário. Nem é um Martin Luther King. Ele não existe sem votos, não pode ser cândido. A situação me faz lembrar aquele momento do filme Questão de Honra, quando o Jack Nicholson grita para o Tom Cruise: “Você não aguenta a verdade!”.
Como o senhor vê a relação do presidente com os artistas populares negros? A campanha de reeleição está divulgando a lista do iPod dele. Ele gosta muito do Jay Z.
Ele precisa ser cauteloso. Por um lado, quer continuar a cortejar a base negra, os negros americanos são a âncora da coalizão Obama. Ele precisa de mais do que apoio, precisa de entusiasmo. Então, nós temos o Obama citando a história cultural negra e a música do Jay Z. Mas a maioria do eleitorado continua a ser branca. Com o rap, ele tem que tomar cuidado. Em 2008 eu fiquei assustado, quando ele fez um discurso respondendo a críticas da então adversária Hillary Clinton. Ele fez aquele gesto, como quem passa a escova no casaco, era uma referência à gravação de Dirt Off Your Shoulder, do Jay Z. Se você vai ouvir a gravação, ela soa misógina e muito vulgar.
O senhor atribui a Michelle Obama um grande impulso à candidatura entre o eleitorado negro, em 2008. O quanto ela ainda é importante nesta campanha?
Ela foi a grande legitimadora do Obama. No começo, ele era tão desconhecido que muitos nem sabiam que ele era negro. Ele tinha um passado multirracial e exótico. Já a Michelle tem a história familiar. É mais escura do que ele, a família fugiu do racismo no Sul, ela cresceu no bairro negro de Chicago. Mas hoje ele precisa menos desta legitimidade racial. O Obama é o soul brother número um da América.
Muita gente estranhou quando a primeira-dama reagiu ao livro Os Obamas, de Jodi Kantor, um livro lisonjeiro para o casal, com o comentário, “tentam me impingir esta imagem de mulher negra ressentida”.
Foi totalmente impolítico da parte dela. Não entendi mesmo. O Obama jamais diria algo assim.
O senhor explora os significados da primeira eleição de Barack Obama. Qual seria o significado de uma reeleição?
Acredito que ele vai ser reeleito. Mas Obama nunca será tão popular quanto foi na noite da eleição de 2008. E nunca será tão reverenciado como foi no dia da posse. Você só pode eleger o primeiro presidente negro uma vez. Uma reeleição vai ser vista como outro marco. Mas não teremos mais a intensidade simbólica e emocional. O Obama abriu a imaginação de muitas pessoas de cor nos Estados Unidos. O grande legado dele vai ser ter sido eleito. E, ao fim de oito anos, não acho que vai haver nenhuma legislação histórica. Ele está fazendo o que a Hillary Clinton poderia ter feito. O seu grande legado vai ser psicológico, ele mudou a psicologia da América. Reconheço que é uma coisa impressionista e não vai aparecer, quem sabe, antes de 30 anos. A partir de então, acho que vai florescer uma geração política permitida pela aparição do Obama.
Fonte: Estadão