Depois de morta, tive acesso à correspondência de noivado entre ambos.
Apaixonada, mais assertiva, dona Tereza dizia que queria enfrentar os desafios ao lado do meu pai, não como dona de casa ou madame. Reagia contra os convites das tias Marta e Rosita, para que passasse a frequentar o Country Club e as aulas de tênis de uma cidade eminentemente mineira, mas que se deixava seduzir pelo glamour do turismo carioca.
Não conseguiu ser a parceira de todos os momentos. De um lado pelo reumatismo infeccioso contraído na infância e pelo hipercolesterol genético que a deixou com problemas cardíacos que a levaram aos 63 anos. De outro, pelos obstáculos de tempos anacrônicos.
Tinha um encanto especial pela política e uma vontade intensa de participar, herança combinada do relacionamento com dois homens públicos excepcionais, seu Oscar e seu (dela) pai Issa Sarraf,
Mas jamais conseguiu entrar na farmácia Central como parceira e conselheira, mesmo tendo uma visão de futuro muito mais adiantada que a do seu Oscar.
Seu Oscar era um farmacêutico no estilo clássico, agente de saúde. A maior parte da área da farmácia era espaço interno, dedicada ao laboratório de manipulação e à sala de injeção. A parte da frente era tomada por um enorme balcão do lado esquerdo, no qual diariamente debruçavam-se amigos para conversar; e um sofá do lado direito, também para receber os amigos. Sobrava pouco espaço para quem vinha comprar.
Quando sobreveio a grande crise pessoal de papai, dona Tereza tentou de todos os modos aconselhá-lo. Orientou-me a buscar a rádio Cultura para divulgar jingles da farmácia, como era quando se casou. Pediu-me que aconselhasse papai a tirar os móveis que atulhavam a farmácia e abrisse espaço para prateleiras, por onde os fregueses pudessem andar e escolher os produtos. Nem ela nem eu, com 17 anos, tínhamos ascendência sobre o velho.
Isso em 1967, quando nem a Drogasil de Poços tinha aderido ainda ao novo modelo de farmácia.
Exerceu sua vocação pública na educação dos filhos. Não foi pouco, mas não foi tudo o que poderia ter sido. Desde cedo orientou minhas irmãs a terem independência econômica e emocional em relação aos futuros maridos. E serem companheiras, sempre, e não competidoras de uma olimpíada doméstica destrutiva.
Fossem outros tempos, fossem outras condições do casamento ou da saúde, dona Tereza teria sido mais que a normalista que jamais lecionou, ou a dona de casa que se dedicou integralmente à educação dos filhos.
Esses percalços, essa dissintonia entre mentes femininas modernas esbarrando nos limites de tempos anacrônicos, mataram muitas vocações públicas, esmagadas pelo machismo mais truculento ou mais sub-reptício. E subsistem até hoje, entranhados e corrosivos como o pecado original.
Dia desses conversei longamente com uma mulher notável. Ela me falou de seu trabalho. Surpreendi-me com a extensão. Perguntei se sabia que estava ajudando a melhorar o país, mudando a vida de dezenas de milhares de pessoas. Olhou-me surpresa, quase assustada: não tinha se dado conta disso. Em casa, o ex-marido gostava de suas aparições públicas mas minimizava, ou não entendia, a extensão do seu trabalho para não perder a prerrogativa de soberano do lar.
Não se pense em um caso isolado.
Conheci grandes mulheres, intelectualmente brilhantes, e emocionalmente dependentes ou de verdadeiros trogloditas com quem se casaram, ou de maridos atenciosos, mas trazendo a carga de desprezo atávico pela condição feminina.
Usam para as esposas o mesmo tom benevolente utilizado para negros ou empregados ou outros alvos de preconceito disfarçado: compreensão total, desde que conheça o seu lugar.
Esse tipo de comportamento não respeita nem a mulher de sucesso, pelo contrário. É como se dissessem: lá fora você poder brilhar; mas aqui em casa, mando eu. Não escaparam dessa sina nem as guerreiras que queimaram sutiãs, que celebraram a pílula e que se lambuzaram no caos supostamente libertador de Woodstock.
Por aí pode-se entender porque algumas mulheres brilhantes, bem intencionadas, mesmo as que passaram por todas as provações da vida, fecham-se em uma teimosia agressiva, tornam-se impermeáveis a qualquer conselho e recorrem a um voluntarismo exacerbado: venceram na vida mas não venceram os traumas carregados ao longo de décadas. E passando por essas provações com uma sensibilidade, uma capacidade de emoção que só as mulheres e os artistas têm e que a maioria dos homens está longe sequer de supor.
Sempre que posso passo informações para minhas meninas sobre essa maldição cultural. Mostro casos de grandes mulheres subordinadas a pequenos maridos e aconselho-as a não aceitar de forma alguma serem minimizadas por futuros namorados ou maridos.
Acho que conseguirão. Os novos tempos espantarão para os armários da história os séculos de submissão feminina.
Fonte: GGN