Rubens Ricupero: Política externa: desafios e contradições

Encontrei no texto de um jovem historiador, Daniel Afonso da Silva, frase que define o estado de espírito com que preparei estes comentários.

por Rubens Ricupero no Instituto João Goulart

Rubens Recuporo ao microfone
Rubens Recuporo – Cebri

A frase é de Ortega y Gasset, que dizia: No sabemos lo que nos pasa y esto es precisamente lo que nos pasa, no saber lo que nos pasa”.

As palavras de Ortega expressam bem a perplexidade do homem diante de um mundo em transformação não só vertiginosa, mas sem interrupção. Confrontados por mudanças bem mais estonteantes que as de então, também nós nos perguntamos:  o que nos passa, o que nos está a suceder no Brasil e no mundo? Tudo, a política externa e a rigor qualquer política, tudo parte da resposta que dermos a essa pergunta. Isto é, a definição da política nasce da maneira certa ou errada com que formos capazes de apreender e interpretar a realidade interna e externa.

Em 1905, o barão do Rio Branco comentava: “A verdade é que só havia grandes potências na Europa e hoje elas são as primeiras a reconhecer que há no Novo Mundo uma grande e poderosa nação com que devem contar…”. Dessa percepção acertada da emergência de um novo centro de poder mundial próximo a nós, Rio Branco extraiu uma decisão: estabelecer na capital dos Estados Unidos a primeira missão diplomática brasileira em nível de embaixada, fato raro na época. Para não deixar dúvida a respeito de sua intenção, declarou:Desloquei o eixo das relações diplomáticas do Brasil de Londres para Washington”.

Eis aí um exemplo bem-sucedido de análise precisa da realidade internacional seguida da consequência prática que se devia retirar dessa percepção. Trinta e cinco anos depois, em meio à fulminante ofensiva nazista, ao colapso do exército francês, três dias antes da ocupação de Paris, o ditador Getúlio Vargas, em discurso no encouraçado Minas Gerais, acreditava vislumbrar o limiar de uma nova era” na qual “os povos vigorosos, aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se deterem na contemplação do que se desmorona e tomba em ruina” (11 de junho de 1940).

Por sorte, o ministro das Relações Exteriores se chamava Oswaldo Aranha, uma das raras vocações autênticas de político de forte convicção democrática e liberal que o Brasil produziu. Sua força de caráter e perseverança, favorecidas pelo oportunismo varguista após a entrada na guerra dos Estados Unidos, pouparam ao país o erro irreparável do qual os argentinos se penitenciam até hoje. Como escreveu seu biógrafo Stanley Hilton: a história do Brasil poderia ter sido outra, caso este homem de ação não estivesse à frente da chancelaria nas horas cruciais de tomada de posição entre as duas grandes coalizões de forças […] no final dos anos 1930”.

Esses dois exemplos de passado não muito distante provam o ponto central da discussão: a fim de acertar em política, é preciso contar com diagnóstico correto dos problemas e da situação. Para tanto, o processo decisório deve estar em mãos de pessoas de qualidade moral e intelectual não necessariamente iguais a Rio Branco e Aranha, mas de experiência e talentos razoáveis. Será que preenchemos essas duas condições neste momento?

Antes de responder, temos de indagar se é possível, a esta altura, cumprir a promessa de dizer algo de significativo acerca da política externa de Bolsonaro. Na data de hoje, o governo completa 56 dias de vida. Em parcela não desprezível do período, esteve quase acéfalo devido à hospitalização do presidente. Em menos de um mês, o vice-presidente respondeu duas vezes pelo governo, gerando ciúmes e desconfianças.

Nesse quadro, de que elementos dispomos para indicar como o Chefe de Estado e seus principais colaboradores encaram o mundo atual e seus desafios? Normalmente, deveríamos partir de documentos e discursos programáticos. Nesse capítulo, a colheita é pobre, por não ter havido tempo talvez ou capacidade intelectual de produzir textos panorâmicos. Quando a oportunidade se apresentou, como no encontro de Davos, preferiu-se optar por discurso minimalista, sem maiores generalizações.

Somos assim forçados a extrair aqui e ali, de entrevistas, mensagens, discursos, os fragmentos de uma narrativa que permitam reconstruir o que seria a visão que o governo tem do mundo e do Brasil. Uma primeira pista, na Apresentação da mensagem ao Congresso, espanta pela evidente desconexão que revela com a realidade: O Brasil resistiu a décadas de uma operação cultural e política destinada a destruir a essência mais singela e solidária de nosso povo, representada nos valores da civilização judaico-cristã”.

Pondo de lado o reducionismo simplista dessa distorção da história brasileira recente, a afirmação aplica a nosso país a fórmula com que setores de extrema direita pretendem explicar a crise do mundo atual. Segundo essa visão, vive-se no momento uma ofensiva mortal contra a chamada civilização judaico-cristã conduzida por forças obscuras como o “marxismo cultural”, o “alarmismo ambiental”, o “globalismo”. Este último é conceito confuso e difuso, uma espécie de conspiração da ONU, das organizações internacionais, do multilateralismo, para impor aos países comportamentos contrários à tradição e à própria natureza, como a ideologia de gênero, a aceitação da diversidade sexual etc. Em termos concretos, a ameaça viria da China e do seu capitalismo anacronicamente chamado de “maoísta”.

O discurso de posse do ministro das Relações Exteriores constitui do começo ao fim uma diatribe contra a ordem global, da qual promete:libertar a política externa, […] libertar o Itamaraty”, pois, “a política externa brasileira estava presa fora do Brasil”. Peremptoriamente adverte: Não estamos aqui para trabalhar pela ordem global. Aqui é o Brasil”. O problema do mundo seria o ódio ao lar, ao próprio povo, o ódio a Deus, que perfaz a agenda global, com o intuito de acabar com as nações, afastar o homem de Deus e destruir a humanidade, nada menos que isso.

Obviamente não se pode tomar a sério formulações como essas, vazias de conteúdo, disparates pronunciados com pompa e falta de senso do ridículo. Se duvidam do que digo, vejam esta pérola de profundidade filosófica: O mito é o mito”.O texto é todo assim, comprometido pelo exibicionismo pedante de descabidas digressões filológicas, recheadas de citações em grego. Não falta nem um trecho em tupi-guarani que reconfortaria o coração do major Policarpo Quaresma, incompreendido na proposta de adoção da língua brasílica como idioma nacionalpor estar adaptada perfeitamente aos órgãos vocais e cerebrais dos brasileiros”.  

Para quem admirava na tradição do Itamaraty o senso de medida e proporção, o equilíbrio, o realismo, a moderação construtiva, é penoso constatar que o discurso do sucessor de Rio Branco e Aranha, de Afonso Arinos e San Tiago Dantas, desperta hoje chacotas, zombarias, hilaridade. Voltando à pergunta inicial sobre se dispomos de presidente ou ministro capaz de diagnosticar corretamente a realidade, a resposta que se impõe é não. Manifestamente, nem o presidente, nem seu ministro, sabem o que nos passa, são incapazes de compreender a complexidade da sociedade global e de traçar nela a linha a ser seguida pelo país.

Num governo heterogêneo no qual o espectro de racionalidade varia bastante de uma ponta à outra, as relações internacionais se situam infelizmente no extremo periférico que os americanos chamam de lunatic fringe”, a franja lunática das opiniões.

Vejamos agora o que produziu em termos de ações e iniciativas concretas a combinação de inépcia diplomática com excentricidade ideológica. Cabem aqui não apenas as decisões executadas. Também as adiadas ou frustradas após o anúncio devido a reações desfavoráveis geram efeitos negativos que devem ser debitados aos responsáveis. Desse ponto de vista, o processo decisório do governo tem sido tão rico em confusões que um jornalista chegou a comentar que Bolsonaro acertava quando recuava e errava quando avançava.

O que mais assombra é que decisões de implicações gravíssimas para a segurança ou os interesses nacionais são anunciadas e suspensas com leviandade reveladora da irresponsabilidade de seus autores. É o caso de três desses anúncios: a da oferta de uma base militar aos Estados Unidos após a visita do Assessor John Bolton, o da mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv a Jerusalém e o da retirada do Brasil do Acordo de Paris sobre Mudança Climática. Em nenhum desses exemplos se apresentou qualquer justificativa racional e válida para fundamentar a decisão.

Uma base militar constitui, no interior da soberania nacional, um enclave de jurisdição de potência estrangeira, similar a Guantánamo em Cuba. Em perto de 200 anos de vida independente, somente uma vez o Brasil concedeu bases a outro país, e isso apenas em situação de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial. Que ameaças sofremos agora para cogitar repetir ação que só se contempla como preliminar de guerra ou de grave perigo? Que consequências traria para a segurança de nossa população o eventual uso de uma base para atacar outra nação? Quais as implicações do ponto de vista da Constituição? é possível tomar decisão de tamanha gravidade sem aprovação do Congresso?

A ideia parece haver sido abandonada devido à reação adversa dos militares. No entanto, o simples fato de ter sido discutida com alta autoridade americana deixa-nos alarmados e inseguros. Não se esclareceram as circunstâncias desse episódio obscuro, aspecto essencial para medir-lhe o alcance. De quem partiu a iniciativa? De Bolton, do presidente Bolsonaro, de Eduardo Bolsonaro, na visita semiclandestina que efetuou a Washington? Fica-se com a impressão de que na relação com os EUA, o céu é o limite, como disse o ministro Ernesto Araújo, ou mais apropriadamente, que não existe nessa relação nenhum limite, nem o da decência, nem o da soberania ou do patriotismo.

A motivação da transferência da embaixada em Israel nada tem a ver com interesses do Estado ou do povo brasileiro. Por considerações eleitorais, destina-se a atender ao setor mais obscurantista e retrógrado de seitas evangélicas que impõem ao governo suas bizarras crenças escatológicas. A proposta fere de frente a Constituição da República, leiga e independente de qualquer fé religiosa. O Brasil sempre defendeu que a fixação definitiva da capital deveria se subordinar a acordo resultante de negociações entre Israel e os palestinos, inspiradas na teoria da coexistência dos dois Estados.

Na ausência de solução negociada, a transferência da embaixada significaria tomar partido em favor de medida imposta por conquista militar, abandonando a equidistância entre as partes. Passaríamos a ser vistos como aliados do lado israelense, inimigos dos palestinos e de uma saída negociada e pacífica para o conflito no Oriente Médio aos olhos dos árabes e das centenas de milhões de muçulmanos do mundo inteiro.

O governo não foi capaz de apontar um só interesse objetivo do Brasil, de ordem política, comercial, de imagem e de soft power, que seria servido por tal decisão. Ao contrário, os riscos de prejuízos são consideráveis e evidentes. Basta lembrar que nada menos que quarenta e nove por cento do total das vendas brasileiras de proteína animal se destina a mercados árabes e do Irã. A mobilização dos setores exportadores ameaçados deteve até o momento a marcha da insensatez.

Ainda que a medida não se concretize, o simples anúncio seguido de incontáveis idas e vindas cria a sensação de governo errático e não confiável. Muito mais que as perdas comerciais, já perceptíveis na mudança de atitude da Arábia Saudita, do Egito e outros árabes, talvez seja irreparável o dano político causado à reputação no Oriente Médio de uma diplomacia outrora respeitada pelo equilíbrio e estabilidade.

Bem mais avariada sai a reputação da diplomacia brasileira do quiproquó relativo ao Acordo de Paris sobre Clima. O presidente Bolsonaro anunciara a princípio que seu governo se retiraria do Acordo invocando razões inteiramente falsas, dignas das fake news de seu modelo inspirador Donald Trump. Alegou que o tratado violava a soberania do país, impondo-lhe metas inatingíveis.

Na verdade, uma das características do instrumento e sua principal fraqueza é que as metas são voluntárias e definidas pelos países, por isso mesmo denominadas NDCs (Nationally Determined Contributions) ou Contribuições Determinadas Nacionalmente. Ora, pouco antes da afirmação de Bolsonaro, o então ministro do Meio Ambiente do governo Temer, Edson Duarte, havia anunciado (13/12/2018) que o Brasil se antecipara em dois anos ao cumprimento da meta de redução de emissões, que deveria ser atingido apenas em 2020.

A segunda razão invocada pelo desinformado presidente é que o Acordo forçaria goela abaixo do Brasil algo misterioso intitulado Corredor Tríplice A ou Caminho da Anaconda. Trata-se de proposta de Martin von Hildebrand, americano naturalizado colombiano, para preservar uma faixa de floresta de 200 milhões de hectares dos Andes até o Atlântico pela Amazônia, seguindo o curso do Solimões, através de terras de oito países amazônicos, onde vivem 385 comunidades indígenas e 30 milhões de pessoas. A mera enunciação dos números evidencia o caráter de ficção da ideia, do mesmo gênero que o famoso projeto dos Lagos, do Hudson Institute, nos anos 1970. A elucubração jamais saiu do papel e nunca chegou sequer às discussões oficiais conducentes ao Acordo de Paris, que, como recordamos acima, se baseia em contribuições voluntárias dos governos.

O que salvou o Acordo foi a intervenção de um dos principais apoios do presidente, o agronegócio. Inúmeros componentes do agro, do setor de produtos florestais ao do cacau e café, alertaram que dependiam do Acordo para acessar centenas de milhões de dólares disponíveis para projetos de desenvolvimento agropecuário sustentáveis. Visivelmente a contragosto, o governo teve de admitir que “por ora” não deixaria o tratado.

De qualquer forma, a sobrevida precária que assim se conferiu à presença brasileira no Acordo apenas atenua um pouco, sem mudar em substância, o abalo dramático e perdurável ocasionado ao respeito de que desfrutou nossa diplomacia ambiental. Fomos um dos principais artífices do tratado, confirmando que no domínio do meio ambiente nenhuma solução pode ser alcançada sem a participação ativa do nosso país, potência ambiental graças à maior floresta equatorial do mundo, à maior reserva de água doce, ao imenso patrimônio de biodiversidade, à riqueza de alternativas de energia limpa e sustentável. Como classificar uma diplomacia que joga fora esse ativo na questão que constitui a mãe de todas as ameaças, o risco mais grave à sobrevivência da civilização humana no planeta?

O que existe de comum entre os três anúncios – o da base militar, da transferência da embaixada e da retirada do Acordo de Paris – é que em todos, o governo Bolsonaro adere à agenda de Donald Trump de maneira mecânica e caudatária. Uma das semelhanças entre os dois governos é que tanto Trump como seu discípulo brasileiro insistem em romper com tudo o que se fazia nos governos anteriores.

Em menos de dois meses, o governo Bolsonaro pode jactar-se de haver efetivamente promovido a demolição radical da política externa que, em linhas gerais, vinha sendo seguida desde o governo Geisel. Essa orientação mereceu em 1984 de Tancredo Neves, líder da oposição, o seguinte juízo: Se há um ponto na política brasileira que encontrou consenso em todas as correntes de pensamento, esse ponto é a política externa levada a efeito pelo Itamaraty.”

Depois da redemocratização, não houve solução de continuidade na política externa. Sua essência consistia na recusa da lógica da Guerra Fria e do alinhamento automático à visão e à agenda dos EUA e das grandes potências. Gelson Fonseca resumiu a diplomacia do governo FHC numa fórmula que se aplicaria a rigor a muitos governos desde 1985, mesmo aos do PT: a busca da autonomia pela participação. Ao fazer do alinhamento com os Estados Unidos a marca definidora de sua política externa, o governo Bolsonaro causa uma ruptura na linha diplomática brasileira dos últimos 44 anos.

Retrocede ao momento imediatamente posterior ao golpe militar no governo Castelo Branco e ao chamado alinhamento automático dos tempos áureos da Guerra Fria, no governo Dutra da segunda metade dos anos 1940. Com um agravante: naquela época, os dirigentes brasileiros encaravam a luta contra a União Soviética liderada pelos americanos como equivalente ao combate interno contra o Partido Comunista e a subversão. Em outras palavras, havia coincidência entre a agenda interna do Brasil e a agenda internacional dos EUA.

Essa coincidência desapareceu com o fim da Guerra Fria, do comunismo e da União Soviética. Desde então, a agenda internacional americana se concentra em temas como a contenção da ascensão da China; o antagonismo com a Rússia; os problemas derivados das invasões do Afeganistão, do Iraque, da queda de Gaddafi na Líbia, as ameaças do terrorismo fundamentalista islâmico; o programa nuclear e de mísseis da Coreia do Norte; a hostilidade ao Irã e sua influência na Síria; a contenção da imigração. Nenhum desses assuntos tem algo a ver com interesses brasileiros e em certos aspectos até os contrariam.

Os entusiastas do alinhamento não vão demorar a descobrir que os americanos são amos insaciáveis e intratáveis, que exigem adesão total e sem reservas. Não se contentam com relações platônicas. Por haver intuído isso, o finado chanceler argentino Guido Di Tella havia proclamado em tom de deboche: “No queremos tener relaciones platónicas: queremos tener relaciones carnales y abyectas”.

A sujeição à agenda de Trump começou cedo. Em meados de fevereiro, o ministro do Exterior compareceu, sem qualquer justificativa de interesse brasileiro, à reunião de Varsóvia convocada pelos EUA para apertar o cerco contra o Irã. A reunião foi um fracasso, pois se abstiveram de participar os ministros de relações exteriores da França, da Alemanha e da União Europeia, justamente os que os americanos desejavam pressionar a abandonar o acordo nuclear com os iranianos. Entretanto, a presença do Brasil como coadjuvante do coro pró-americano chama a atenção para fato alarmante.

Por motivação puramente ideológica e a fim de agradar os americanos, a diplomacia atual está disposta a sacrificar interesses brasileiros concretos. O Irã representa 7% do total das exportações brasileiras de carne, tanto quanto a União Europeia. No ano passado, vendemos aos iranianos um bilhão de dólares de milho, mais de quinhentos milhões de soja, 328 milhões de carnes. O intercâmbio com Teerã rendeu ao Brasil seu quinto maior superávit comercial. Os exportadores brasileiros estão sendo obrigados a despachar seus produtos através do território da Turquia. Que interesse teria o país em prestigiar as sanções americanas, unilaterais, ilegais e prejudiciais ao comércio brasileiro?

Mas o verdadeiro preço que o governo Trump cobrará de Bolsonaro não é o Irã, nem a embaixada em Jerusalém, ou a saída do acordo de Paris. O objetivo primordial da estratégia norte-americana reside na contenção da China, na luta para impedir que os chineses alcancem a superioridade em tecnologias de ponta que lhes assegure a posição de primeira superpotência mundial. É isso que está em jogo no conflito comercial entre os dois gigantes. O Brasil, assim como a América Latina, a África e outras regiões passam a ser cenários da disputa estratégica.

Em recente entrevista a O Estado de São Paulo, ao ser indagado sobre o que Trump espera do governo Bolsonaro, Steve Bannon respondeu: Claramente, há uma preocupação com a China […] O Brasil será um dos campos de batalha, pois a China não vê o Brasil pelo seu capital humano […] O que eles veem é uma ampla oportunidade de recursos naturais e de agricultura. O tipo de capitalismo que fazem no Brasil e na África subsaariana […]é o capitalismo predatório dos chineses que tem de ser contido. Um dos locais-chave para contê-lo é o Brasil.”

Essa opinião não mereceria maior atenção se fosse restrita a Bannon ou mesmo aos governantes de Washington. O problema é que ela se parece estranhamente à visão do próprio Bolsonaro, segundo o qual a China quer comprar o Brasil, não comprar do Brasil. Após essa declaração, puseram-se panos quentes, o presidente-eleito recebeu o embaixador chinês, o mesmo fez o vice, general Mourão. É inegável, porém, que a relação Brasil-China se rachou, acendeu-se uma luz amarela e as coisas não serão mais o que eram antes.

Bolsonaro já atribuiu a motivos ideológicos a expansão do comércio brasileiro com a China e prometeu fazer com que o intercâmbio do Brasil com os EUA volte a ser dominante em nossas trocas externas. Para uma plateia qualificada como esta, não preciso demonstrar com números e porcentagens porque o mercado chinês desempenha papel insubstituível no saldo comercial e nas relações econômicas externas do país.

Tampouco necessito mencionar que o progressivo declínio das exportações brasileiras ao mercado americano se deve a fatores dificilmente reversíveis: a concentração de nossas vantagens comparativas em produtos primários nos quais os EUA são nossos concorrentes (soja, milho, carne bovina, de frango, suco de laranja, algodão), o colapso da competitividade exportadora da indústria, a diversificação de nossos mercados, as cadeias integradas de valor com o contíguo México que os americanos consolidaram ao longo de 25 anos do NAFTA etc.

Há uma contradição insanável entre o populismo antiglobalista, alma do governo, e o liberalismo de Guedes, avesso a subsídios, empenhado na abertura da economia, na redução das barreiras e na inserção do país na economia global. Na primeira escaramuça acerca da importação de leite em pó, o setor ruralista impôs uma derrota à equipe econômica. Haverá outras, pois as contradições estão por todo o lado, como entre evangélicos e o agronegócio na questão da mudança da embaixada.

A insensibilidade para interesses concretos deriva da incapacidade de perceber a realidade, a brasileira e a internacional. Significativa do descolamento da realidade é a lista tanto dos países nominalmente privilegiados no discurso de posse do chanceler quanto as omissões, talvez mais eloquentes ainda. Nomeados individualmente foram apenas os EUA de Trump, o Israel de Netanyahu, a “novaItália de Salvini, a Hungria de Viktor Orban e a Polônia. A mistura é digna de uma salada russa. O tempero que lhe dá unidade é o caráter iliberal ou antiliberal dos regimes, a hostilidade a imigrantes e refugiados, o nacionalismo, a negação dos direitos humanos, dos problemas ambientais, da promoção da igualdade entre mulheres e homens.

Pertencer a esse grupo é condenar-se ao isolamento e à reprovação da opinião pública mundial. Para o Brasil, é retroceder aos tempos do regime militar. Nessa época, o país cultivava o mau hábito de sair esmagado nas votações da ONU, na companhia solitária do Portugal salazarista, da África do Sul do apartheid, de Israel e dos EUA. Sofríamos, segundo o embaixador Araújo Castro, do complexo de Greta Garbo (I want to be alone), eu quero ficar sozinha. É o que nos espera novamente.

Em outras palavras, vamos perder, se é que já não perdemos, a única coisa que nos restou depois que o colapso político-econômico dos últimos anos liquidou, dentro e fora do Brasil, a imagem de um país que tinha dado certo. O que sobrara, não obstante o fracasso, era um patrimônio não desprezível de poder brando ousuave, de soft power,de respeito por uma diplomacia profissional competente, comedida, força construtiva de moderação e equilíbrio. Agora, restará apenas o fracasso.

Dentre as omissões do discurso oficial, destacam-se a Argentina, o Mercosul, o México, a Aliança do Pacífico, a União Europeia, a China, a Ásia, a Índia, o grupo dos BRICS, o Oriente Médio, em resumo, as áreas de concentração das oportunidades de exportação, a começar pelo agro. Outro exemplo da incapacidade de reconhecer o interesse nacional é o da migração. Em contraste com os EUA de Trump, o Brasil é hoje país de emigração, muito mais que de imigração. Que sentido tem então retirar a assinatura do Pacto Global para Migração, de cuja proteção poderiam beneficiar-se três milhões de brasileiros emigrantes?

Nas últimas semanas, a crise venezuelana ofereceu ao Brasil a oportunidade de aglutinar os latino-americanos em torno de uma solução para restabelecer a democracia sem interferência de potências de fora. Poderíamos ter proposto um programa mínimo com base na realização de eleições sob administração de transição e fiscalização internacional. Preferimos passivamente deixar a iniciativa e a liderança ao governo Trump, aceitando figurar como atores coadjuvantes de uma empresa sobre a qual não exercemos nenhum controle. Colaboramos para fazer a América do Sul retroceder a cenário de rivalidade de EUA e Rússia.

Não admira que os diplomatas estrangeiros tenham começado a gravitar em torno do vice, general Mourão, que desponta surpreendentemente, em meio ao desvario ideológico, como fonte de sensatez e realismo. Simplesmente por ter os pés no chão, começa a acumular poder.

Sobre os menos de dois meses da política externa, não resta muito a dizer. Deixei de fora os aspectos mais extravagantes e os mais inquietantes, entre eles o patrulhamento ideológico no Instituto Rio Branco, no Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais, a reforma administrativa açodada feita por estranhos ao Itamaraty, imposta de cima para baixo, com violação da hierarquia funcional, subversão de práticas e procedimentos testados na experiência.

A partir de agora, as viagens presidenciais aos EUA e Israel previstas para março devem começar a produzir, se não resultados concretos de monta, ao menos exposições mais sistemáticas do que pretende o governo com a diplomacia. Pela amostragem que vimos, é difícil esperar grande coisa.

Afinal, o próprio vice-presidente, general Mourão, em entrevista à Época, e cito aqui a matéria “ironizou o destaque aos EUA e a Israel dado pelo chanceler nas relações diplomáticas. –Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito? Indagou em tom de troça. – A diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos de outros países”.

E, sugeriu como título da reportagem: Terá Ernesto condições para tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?” Termino com os comentários e a pergunta do general, pois não saberia encontrar melhor fecho[1].

 

 

 

[1]Em entrevista mais recente à BBC (22/2/2019), indagado sobre as declarações à Época, Mourão respondeu: “Eu mudei meu pensamento em relação ao nosso chanceler. Ele está organizando o Itamaraty de acordo com as ideias que ele tem e está colocando foco nas diretrizes do presidente”. Não preciso acrescentar que essas palavras, longe de alterar nossas preocupações, apenas as agravam.

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