Solidão em rede: nunca estivemos tão conectados, nem tão solitários

Para os nascidos a partir dos anos 80, o celular é o principal meio de interação com o mundo – e com os outros. Por isso, os millennials saem menos de casa, namoram menos, casam menos, engravidam menos e morrem menos em decorrência da violência urbana do que jovens de outras décadas. O resultado emocional desta nova equação social é também uma geração muito mais sozinha, mas não necessariamente deprimida

Por Maria Clara Drummond, Do Marie Claire

Ilustração de uma mulher sentada tomando algo quente.
Solidão em rede (Foto: Ilustração Carolina Teixeira (ITZÁ))

 

Robinson Crusoé, o náufrago mais famoso da ficção literária, foi obrigado a ficar sozinho em uma ilha por 28 anos. Primeiro, ficou assustado, depois deprimido, até encontrar as benesses advindas do isolamento total. O personagem de Daniel Defoe é citado pela escritora inglesa Sara Maitland, autora do livro Como ficar sozinho (Objetiva, 192 págs., R$ 32,90), publicado no Brasil pelo selo The School of Life. Há uma certa identificação entre os dois: Sara, que agora tem 69 anos, também está há mais de duas décadas em estado de isolação, morando em uma das regiões com menor densidade demográfica da Europa, na Escócia – ali, o mercado mais próximo é a 15 quilômetros de distância. Inicialmente, a decisão ocorreu por conta do término de seu casamento. Mas, depois de um tempo, acabou virando fonte de prazer – tal qual Robinson Crusoé.

Em entrevista a Marie Claire, ela conta: “Robinson Crusoé foi colocado nessa situação contra sua vontade. Porém, se estar sozinho é uma escolha de vida, as coisas ficam mais fáceis e divertidas. Acredito que deveríamos ensinar às crianças os prazeres de se estar sozinho. Por exemplo: não colocá-las para ficarem reclusas no castigo. A solidão deveria ser uma recompensa. Você se comportou bem, agora pode ter algumas horas por conta própria”. Depois de sua intensa experiência com a própria companhia e nenhuma mais, Sara não tem dúvidas: “É possível estar sozinho, mas não solitário, porque a pessoa simplesmente gosta de estar assim”. “Vivemos em uma sociedade que diz que quem está sozinho é, de alguma forma, alguém que falhou como humano”, continua ela, que entrega: se por acaso sente a solidão, marca um Skype com um dos netos.

“Bons encontros podem acontecer a partir da internet”, acredita a psicanalista Bianca Dias. “Mas pode sim aumentar a solidão quando os encontros não se efetivam na presença do corpo.” Esse diagnóstico encontra eco na experiência da jornalista gaúcha Stefanie Cirne, 26. “Desde a pré-adolescência, muitos dos meus contatos mais próximos eram virtuais, que eu conhecia em fóruns temáticos de discussão. Achava mais fácil encontrar pessoas com quem me identificasse do que na escola, onde tinha afinidade com poucos. A distância pode trazer facilidades valiosas. Existem questões íntimas que só contei para amigas que fiz on-line, justamente porque estão removidas do meu círculo imediato, e eu sentia que assim meu segredo estava seguro, ou o meu desabafo seria ouvido com mais objetividade.”

Stefanie percebeu os desgostos das relações majoritariamente virtuais em uma comemoração. “Há uns quatro anos, tentei planejar a festa da formatura da faculdade e percebi que quase não teria quem convidar, porque alguns dos meus amigos mais queridos moravam em outros estados ou até mesmo países.” Não houve festa, mas pelo menos a experiência serviu como aprendizado: “Hoje espero coisas diferentes de cada amizade. Sei que o colo de uma amiga que mora em outro estado não é igual ao de uma que mora a minutos de mim, e que preciso equilibrar as relações on e off para não me sentir solitária”.

Stefanie faz parte da ala mais jovem da geração dos millennials, indivíduos nascidos entre 1979 e 1995. Mas a relação entre celular e vida cotidiana fica ainda mais acentuada entre aqueles que nasceram após esse período – afinal, já eram adolescentes na época do lançamento do iPhone. As gerações mais jovens bebem menos, transam menos, engravidam menos, dirigem menos e ficam mais tempo no celular. Por outro lado, morrem menos por mortes violentas – um reflexo da diminuição dos encontros presenciais. O Brasil, por exemplo, teve, nos primeiros nove meses de 2018, uma redução de 12,4% no número de mortes violentas com relação ao mesmo período de 2017 – o dado é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Chamo a geração pós-millennial de iGen. São jovens que estão 100% moldados pelo uso do celular. Eles ficam até mais tarde na casa dos pais, saem muito pouco para encontrar os amigos na rua, mas nem por isso melhoraram a relação com a família. Continuam distantes, solitários, cada um com seu celular e seu mundo particular”, explica Jean Twenge, psicóloga especialista em diferenças geracionais, autora do livro iGen (Martins Fontes, 368 págs., R$ 52). “Normalmente, um fator não é o suficiente para definir uma geração. Mas as mídias sociais e o aumento do uso de celulares causaram um terremoto de uma magnitude há muito tempo não vista”, continua ela, em um artigo para a revista norte-americana The Atlantic.

Existe uma razão concreta e pragmática para isso: a crise econômica que se estende no mundo desde 2008. Sair, beber, ir a festas – e assim conhecer pessoas ao vivo e a cores – custa dinheiro. Acaba sendo mais barato que a interação ocorra num quarto vazio através do celular. Acontece que a solidão tem consequências físicas: elevam-se os níveis de cortisol – o hormônio do estresse –, a resistência à circulação de sangue aumenta e certos aspectos da imunidade diminuem. Esse modus operandi também tem relação com os índices de depressão e suicídio. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é a doença que mais cresce no mundo. São 322 milhões de pessoas, representando 4,4% da população mundial, acometidas por ela. Até 2020, a depressão será a doença mais incapacitante do mundo. Só no Brasil, 75 mil pessoas foram afastadas do trabalho por esse motivo em 2016.

Uma análise feita na Universidade de Chicago – de 70 estudos combinados, com mais de 3 milhões de participantes – vai além e demonstra que a solidão aumenta o risco de morte em 26%, quase o mesmo que a obesidade. O fato de que mais de uma em cada quatro pessoas em países industrializados pode estar vivendo em plena solidão deveria, sim, nos preocupar.

#nofilter

O Instagram é a rede social da inveja, dizem. Ali, todos parecem estar em viagens idílicas, em festas inesquecíveis e em uma vida familiar harmônica. Até mesmo o emprego, outrora um aspecto que era permitido odiar sem culpa, ganha a hashtag #ilovemyjob. Um estudo publicado pela Universidade da Pensilvânia relacionou o uso das redes sociais (Instagram, Facebook e Snapchat) com uma maior capacidade de desenvolver ansiedade, depressão e solidão. G*., 32, entendeu recentemente que sofre do terceiro. Era 2012 quando ela saiu da casa dos pais para morar sozinha em São Paulo, onde desde então ganha a vida como programadora freelancer. O máximo de tempo em que ficou sem sair do apartamento em que vive na tumultuada rua da Consolação foi onze dias. Onze dias seguidos sem colocar os pés na rua. G. diz que estar por tanto tempo fisicamente sozinha não lhe parecia uma questão até dias atrás, quando se deu conta de que não tinha com quem dividir uma “grande conquista”, a compra, “à vista”, do primeiro apartamento.

“Não ligaria para os meus pais para contar, não sem antes ter a documentação nas mãos. Mas me deu vontade de dar a notícia para um amigo e percebi que não poderia fazer isso com nenhum deles. Não porque não são amigos em que confio, mas porque não mantenho contato frequente com eles. Me pareceu estranho telefonar para eles, do nada. Diria o quê? Comprei um apartamento e desculpa pelo sumiço de seis meses?” G., que pediu anonimato para essa entrevista, não tem Facebook ou Instagram. Sua única conta em uma rede social é no Twitter. E é através da plataforma que se relaciona com outras pessoas e até conhece novas. “No Twitter, só interajo quando desejo e não sofro com as postagens dos outros. É um bom filtro para quem quer aparecer só de vez em quando”, afirma.

Ilustração de duas mulheres, uma virada de costas para outra, mexendo no celular.
Solidão em rede (Foto: Ilustração Carolina Teixeira (ITZÁ))

É possível ser feliz sozinho

“Não acredito que a solidão tenha aumentado com as redes sociais, e sim diminuído. E isso é um problema”, opina a filósofa brasileira Viviane Mosé. “As pessoas estão o tempo inteiro convivendo com os outros através da internet. E, por isso, deviam ficar mais desconectadas, para conviver consigo mesmas e assim conseguirem filtrar seus desejos e avaliar seus afetos.” Portanto, é importante entender: do que falamos quando falamos sobre solidão? “Solitude é a descrição de um fato: você está consigo mesmo. Solidão é a resposta emocional negativa a isso”, define Sara Maitland numa entrevista ao jornal inglês The Guardian. “Mas há um problema cultural sério em relação à solitude. Ser sozinho em nossa sociedade suscita uma questão sobre identidade e bem-estar. É como se fosse um infortúnio. Não precisa ser assim. Estar só pode nutrir trabalhos artísticos. É algo que permite o desenvolvimento de gostos pessoais, da originalidade, da gestão do tempo e da independência do pensamento. Dormir sozinho melhora a qualidade do sono. Mas a maior surpresa é a descoberta de que sozinho você é, de fato, uma pessoa interessante, com recursos inesperados”, defende Sara.

No fim, talvez seja bom prestar atenção no que escreve Carlos Drummond de Andrade: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim”.

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