Por Felipe A. P. L. Costa
Na noite do sábado (15/2), visitando a editoria de Ciência da Folha de S.Paulo , deparei com a seguinte chamada (grifo meu): “Museu de SP lança megaexposição sobre a evolução humana, trazendo com destaque réplicas de diversos hominídeos brasileiros”. A matéria em questão, intitulada “São Paulo terá megaexposição permanente sobre evolução” , de Giuliana Miranda, foi publicada em 1/2/2014.
A exposição está sendo montada no Palácio das Indústrias, prédio que já abrigou a prefeitura da cidade de São Paulo e hoje é administrado por uma entidade privada chamada Catavento Cultural e Educacional. A idealização da exposição e a origem dos itens expostos (a rigor, réplicas) couberam, porém, a uma instituição pública, o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH), da USP, coordenado pelo professor e pesquisador Walter Alves Neves. A inauguração, originalmente prevista para fevereiro, foi adiada para março.
Abrindo um parêntesis
O ponto central deste artigo é outro, mais cabem aqui dois comentários paralelos. O primeiro diz respeito ao local da exposição. As instalações do Catavento estão divididas em quatro grandes seções (Universo, Vida, Engenho e Sociedade). A seção Vida abriga nove instalações (ver aqui), intituladas “Biomas”, “Árvore da Vida”, “Insetos”, “Vida no Oceano”, “Aquários Marinhos”, “Fotossíntese”, “Do Veneno ao Remédio”, “Aves do Brasil” e “Evolução e Darwin”.
A julgar apenas pelo que vi no sítio do Catavento, sou de opinião que certos ajustes e correções precisam ser feitos o quanto antes. Em uma foto da instalação “Aves do Brasil”, por exemplo, vê-se uma grande faixa com os dizeres “Ouça o canto dos pássaros do Brasil”, ao lado da figura de um tucanuçu (Ramphastos toco), a maior espécie vivente de tucano. Os organizadores cometeram aí dois erros grosseiros (e graves, em se tratando de um espaço dito educativo). O primeiro: tucanos são aves, mas não são pássaros (ver, neste Observatório, o artigo “Engarrafamento em via dupla” ). O segundo: tucanos vocalizam (para ouvir a vocalização do tucanuçu, clique aqui), mas a vocalização deles não é propriamente um canto. Em termos ornitológicos, o canto é entendido como uma composição de notas variadas (para detalhes e comentários adicionais, ver SICK 1997), algo típico dos pássaros (aves da ordem Passeriformes). Arapaçus (família Dendrocolaptidae), bem-te-vis (Tyrannidae), sabiás (Turdidae) e saíras (Thraupidae) são pássaros e todos eles cantam – eis alguns exemplos: arapaçu-de-bico-torto (Campylorhamphus falcularius, ouça aqui); bem-te-vi (Pitangus sulphuratus, aqui); sabiá-do-campo (Mimus saturninus, aqui ) e saíra-ferrugem (Hemithraupis ruficapilla, aqui).
O segundo comentário diz respeito ao título da exposição, “Do macaco ao homem”. Acho que não ficou nada bom. Em primeiro lugar, porque ressalta a segregação entre os seres humanos e a grande maioria das demais espécies viventes de primatas, algo que tende a reforçar a visão antropocêntrica de boa parte do público em relação ao mundo animal. Em segundo lugar, porque dá vazão a uma interpretação equivocada a respeito da nossa história evolutiva, notadamente a noção de que a espécie humana poderia ter derivado (ou não) de alguma outra espécie vivente de primata. A exposição, evidentemente, não deverá reforçar nenhum desses equívocos, mas não estou aqui falando da exposição, e sim do nome dado a ela. Por fim, julgo o título inadequado porque ele ignora que os nossos parentes vivos mais próximos não são propriamente os “macacos” (ver, neste Observatório, o artigo “Primatas, antropoides ou hominídeos?”), e sim os grandes símios (ver adiante). De resto, levando em conta a vigorosa tradição de pesquisa do LEEH, penso que “Escavando as origens da humanidade” ou “Reconstruindo a história evolutiva da espécie humana” seriam títulos mais apropriados.
Retomando o fio da meada
Mas voltemos ao ponto principal: fiquei particularmente intrigado com as últimas três palavras usadas na chamada da matéria – “diversos hominídeos brasileiros”. O que será que a repórter (ou o editor) quis dizer com isso? Não sei ao certo, mas desconfio que esse pequeno fragmento de frase tenha induzido muitos leitores a erros e mal-entendidos.
Afinal, quantas e quais espécies (viventes ou extintas) de hominídeos poderiam ser apropriadamente rotuladas de “brasileiras”? Para responder a esta pergunta, devemos antes saber quantas e quais espécies (viventes ou extintas) de primatas pertencem à família dos hominídeos.
Não custa lembrar: a terminação “-ídeo(s)” (aportuguesamento da partícula latina “-idae”) indica que estamos nos referindo a uma família zoológica – nesse caso, especificamente, à família Hominidae. Alternativamente, poderíamos falar em hominíneos (integrantes da subfamília Homininae), homininis (integrantes da tribo Hominini) ou homininos (integrantes da subtribo Hominina).
Quem são os hominídeos
A família Hominidae foi durante muito tempo definida pelos estudiosos (e.g., LES GROS CLARK 1978 [1959], PILBEAM 1977) de modo a abrigar apenas e tão-somente a espécie humana (Homo sapiens) e seus parentes extintos mais próximos (Homo erectus, H. habilis, Australopithecus etc.). Nenhuma outra espécie vivente era incluída entre os hominídeos – chimpanzés e gorilas, por exemplo, eram colocados na família Pongidae. Essa visão começou a perder força ainda na década de 1960, vindo por fim a se tornar uma posição minoritária (para detalhes adicionais, ver GOODMAN 1996; para comentários em português, ver LEWIN 1999).
Os sistemas de classificação atuais estão ancorados nas chamadas árvores filogenéticas. Em uma árvore filogenética, a posição relativa de cada grupo (espécie, gênero etc.) indica a proximidade evolutiva (“grau de parentesco”) em relação aos grupos vizinhos. Ainda há controvérsias a respeito da classificação dos primatas (ordem de mamíferos à qual pertencemos), mas o ponto de vista predominante é o de que os limites da família Hominidae devem comportar outras espécies viventes.
Eis uma possível classificação para os hominídeos viventes (para detalhes e comentários adicionais, ver GOODMAN 1996, FINSTERMEIER et al. 2013; ver, porém, HUANG 2012; para comentários em português, ver LEWIN 1999):
Superfamília Hominoidea: hominóideos
1. Família Hylobatidae (17 espécies arranjadas em quatro gêneros): hilobatídeos ou pequenos símios (in., lesser apes)
2. Família Hominidae (sete espécies arranjadas em quatro gêneros): hominídeos ou grandes símios (in., great apes)
2.1. Subfamília Homininae
2.1.1. Tribo Pongini: Pongo (duas espécies de orangotangos)
2.1.2. Tribo Hominini
2.1.2.1. Subtribo Gorillina: Gorilla (duas espécies de gorilas)
2.1.2.2. Subtribo Hominina: Pan (duas espécies de chimpanzés) e Homo (seres humanos)
Coda
De acordo com a classificação acima, o termo hominídeo se aplicaria então a sete espécies viventes de grandes símios (além, claro, de uma série de espécies fósseis, já extintas). Cabe notar que nenhuma dessas sete espécies (ou seus ancestrais extintos mais próximos) é nativa das Américas (América do Norte, Central ou do Sul). Todas elas são africanas ou asiáticas – i.e., até onde sabemos, todas surgiram nos limites dos continentes que hoje chamamos de África e Ásia.
Tal afirmativa vale, inclusive, para a nossa própria espécie: de acordo com as evidências disponíveis, os primeiros colonizadores que aqui chegaram (entre 15 mil e 40 mil anos atrás, as estimativas ainda são imprecisas) já eram seres humanos anatomicamente modernos (Homo sapiens sapiens). Alguns autores ventilam a hipótese de que outra espécie do gênero, o H. erectus, tenha colonizado as Américas, há uns 300 mil anos, mas essa possibilidade ainda é controversa.
A rigor, portanto, inexistem hominídeos que possam ser apropriadamente rotulados de “brasileiros”. Somos todos africanos.
Referências citadas
** FINSTERMEIER, K. & outros 6 coautores. 2013. A mitogenomic phylogeny of living primates. PLoS ONE8 (7): e69504.
** GOODMAN, M. 1996. Epilogue: A personal account of the origins of a new paradigm. Molecular Phylogenetics and Evolution 5: 269-85.
** HUANG, S. 2012. Primate phylogeny: molecular evidence for a pongid clade excluding humans and a prosimian clade containing tarsiers. Science China (Life Sciences) 55: 709-25.
** LE GROS CLARK, W. E. 1978 [1959]. A classificação dos primatas. In Mussolini, G., org. Evolução, raça e cultura, 3ª edição. São Paulo, Companhia Editora Nacional.
** LEWIN, R. 1999. Evolução humana. São Paulo, Atheneu.
** PILBEAM, D. 1977. A ascendência do homem. São Paulo, Melhoramentos & Edusp.
** SICK, H. 1997. Ornitologia brasileira, 2ª edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo, escritor e autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)
Fonte: Observatório da Imprensa