Suíça defendeu escravidão no Brasil, revela documento; tema é tabu no país

Enviado por / FonteUOL, por Jamil Chade

Documentos oficiais revelam que o governo da Suíça sabia da existência de cidadãos do país que eram donos de escravos no Brasil e que argumentou ao Parlamento à época que seria uma violência punir os empresários europeus pelas práticas.

A informação sobre os novos documentos descobertos nos arquivos do Estado foi revelada nesta semana numa reportagem da RTS, a TV pública do país. Os informes foram obtidos também pelo UOL e mostram como os europeus viam a população escravizada como “corrupta”.

O documento e as revelações abriram um debate local, com parlamentares cobrando do governo uma atitude de reconhecimento do papel da Suíça na escravidão. Mas o tema é considerado um tabu no país que, nos bastidores, teme qualquer ação que caminhe para pedidos de compensação financeira.

O centro da polêmica são os suíços que foram donos de escravos no sul da Bahia no século 19, principalmente na região de Ilhéus. Com 2.000 homens escravizados, fazendas e cidades, como a de Helvecia (BA), produziam cacau e açúcar para a exportação. Uma delas era a Fazenda Vitória, explorada pelos suíços Gabriel Mai e Ferdinand von Steiger a partir de 1852.

As autoridades suíças sempre negaram ter participado do sistema escravagista, indicando a existência de casos isolados de fazendeiros suíços. Mas os arquivos federais revelam agora, segundo o historiador Hans Faessler, que o governo suíço não agiu contra a escravidão e, além disso, defendeu os suíços que possuíam pessoas escravizadas.

Em 2 de dezembro de 1864, um informe do Conselho Federal suíço enviado ao Parlamento descrevia a situação no Brasil. No documento, fica claro que o governo sabia da situação e até mesmo do preço pagos pelos escravos.

O informe era uma resposta a um pedido de um deputado da época, Wilhelm Joos, que havia apresentado uma moção sugerindo que os suíços que fossem donos de escravos no exterior deveriam ser alvos de medidas penais em Berna. Como resposta, o governo na época rejeitou a proposta do deputado.

O documento agora é considerado como a primeira prova do reconhecimento das autoridades sobre o papel da Suíça na escravidão no Brasil.

“Os elementos mais corruptos de toda a população”, diz o documento. Em outro trecho, ao descrever a situação brasileira e ao justificar a compra de pessoas, as autoridades suíças explicam as diversas modalidades de escravidão no Brasil:

“Os escravos contratados (alugados) são, na maioria das vezes, indivíduos pervertidos, e é por isso que muitas famílias preferem pagar um preço alto por bons escravos e ter empregados de confiança por um longo tempo. A vantagem de ter servos fiéis e adequados na família não pode ser muito apreciada em um país onde a classe de domésticos é o elemento mais corrupto de toda a população”.

Imagem: Reprodução

“Injustiça” contra fazendeiros suíços

É a situação dos fazendeiros suíços que concentra a argumentação do governo da época. Segundo o documento, seria impossível privá-los de suas propriedades, adquiridas de forma legal.

Para as autoridades suíças, os escravos eram “necessários para a exploração, pois a maior parte das terras no Brasil é cultivada por escravos”.

“O principal valor de uma propriedade brasileira não consiste, como na Europa, na terra (que é de pouco valor dada a imensa extensão do Império), mas sim no número de escravos usados para exploração”, explica o governo.

De acordo com a proposta que estava sendo combatida pelo governo, ela consistiria em proibir os suíços de comprar e vender escravos e impor penalidades pela violação dessa proibição.

“Ora, sabemos que há um certo número de famílias suíças no Brasil que possuem plantações e as têm cultivadas por escravos; sabemos que a economia deste país está infelizmente organizada de tal modo que outro modo de exploração não foi possível e não é possível no momento atual; sabemos que a maior parte da fortuna desses suíços consiste precisamente nesses elementos de trabalho e que sem eles, no estado das coisas no Brasil, suas mercadorias seriam de pouco valor”, justifica o governo suíço.

“A partir do momento, portanto, em que proibíssemos a esses suíços a venda de seus escravos, sob a ameaça de severas penalidades, cujos efeitos os atingiriam em seu retorno ao país, eles se veriam a alternativa de se verem banidos para sempre de sua terra natal ou despojados da maior parte de sua fortuna”, alerta o governo.

A autoridade suíça, assim, concluiu que:

“Acreditamos que esse tipo de ação é injusto. Podemos lamentar que famílias suíças tenham se estabelecido no Brasil e se tornado fazendeiros proprietários de escravos; podemos admitir que essa condição exerce uma influência infeliz sobre a posição dos colonos suíços, – mas querer ajudar esses últimos infringindo a honra e os direitos civis suíços de outros, ou privando-os de parte de sua fortuna legitimamente adquirida, é algo repugnante às nossas ideias de moralidade e justiça”.

Imagem: Reprodução

O que chama mais a atenção do historiador Hans Faessler é o fato de que o documento deixa claro que o crime, para as autoridades suíças, não era a escravidão.

A lógica perversa do Conselho Federal da Suíça é que a violência não é a escravidão, mas as medidas penais contra os proprietários.

Hans Faessler, historiador

Na contramão da vizinhança

Se o governo suíço mantinha essa posição, todos seus vizinhos caminhavam para uma outra lógica. França, Holanda e Grã-Bretanha já tinham abolido a prática, e os EUA estavam prestes a fazô-lo.

“O Conselho Federal se transformou no último governo do Ocidente que justifica o crime da escravidão”, constata o historiador.

Nos últimos 20 anos, deputados suíços fizeram oito interpelações ao governo do país para que aceitasse debater o papel da Suíça na escravidão. Mas a resposta foi sempre a mesma: as autoridades agiram conforme as regras daquele momento.

Para a deputada Samira Marti, é fundamental que o governo aceite reabrir o debate, inclusive para lidar com a “desigualdade no mundo e o racismo”. “É importante corrigir essa visão de história”, disse.

Banqueiros suíços foram fundamentais para economia escravagista

Durante 300 anos, entre 9 milhões e 14 milhões de africanos foram feitos como escravos e cruzaram o Atlântico para servir a uma economia baseada na exploração nas Américas.

Documentos e pesquisas realizadas nos últimos anos começam a destapar um verdadeiro tabu. Longe dos portos de Lisboa, Luanda ou Salvador, eram banqueiros e empresários suíços que, de uma forma expressiva, financiavam o tráfico e se enriqueciam com ele.

Hoje, parte dos prédios imponentes e palácios de cidades na Suíça fazem parte de um cenário idílico, mas a realidade é que foram erguidos justamente com os lucros dessa atividade — legal à época.

O tráfico acontecia em um sistema de comércio triangular entre a Europa, África e Américas. Dos portos europeus saíam barcos carregados com produtos têxteis que, nas costas da África, eram trocados por seres humanos. Uma vez embarcados nos navios, os escravos eram dirigidos para as Américas e revendidos. Até que esses barcos voltassem para a Europa com o dinheiro, a expedição poderia durar até dois anos.

Justamente para financiar essa viagem e pagar pelo seguro da “mercadoria” é que os suíços entraram como parceiros nesse setor.

Bancos e famílias como Burckhardt, Weiss, Favre ou Rivier, financiaram dezenas de expedições, numa atividade bastante arriscada. As ameaças eram de revoltas nos navios, de tempestades que poderiam gerar a “perda total” da embarcação e mesmo surtos de doenças durante a travessia, matando metade dos escravos.

Entre 1783 e 1790, por exemplo, os irmãos Weiss financiaram dez expedições em barcos que receberam nomes como “La Ville de Bâle (A cidade da Basiléia)”. As estimativas apontam que, entre 1773 e 1830, mais de cem expedições foram financiados pelos suíços, o que significou o transporte de milhares de africanos. Alguns historiadores, como Thomas David, Bouda Etemad e Janick Marina Schaufelbuehl, estimam que os suíços financiaram o tráfico de 175 mil escravos.

Na cidade da Basileia, por exemplo, os documentos revelam que o empresário Christophe Bourcard bancou mais de 20 expedições, com um total de 7.000 escravos entre 1766 e 1815. Em Zurique, Jean Conrad Hottinger comandou expedições para deportar quase mil escravos.

O banqueiro Isaac Thellusson investiu em pelo menos três expedições negreiras, o mesmo feito pelo banco Banquet & Mallet. Christophe Jean Baur, um sócio do banco “Tourton & Baur”, aplicou parte da sua fortuna em 1748 na Sociedade para o Comércio de Escravos da Angola. A rota principal era o fornecimento de “produtos” para a ilha de Santo Domingo, hoje o Haiti e a República Dominicana.

Já o conhecido banqueiro de Genebra, Antoine Bertrand, comprou ações na “Companhia da Luisiana”, responsável por entregar escravos para as colônias francesas na América do Norte.

Segundo o historiador Hans Fässler, investidores de Genebra se aliaram ao banco de Zurique Leu & Co para financiar a Dinamarca na compra de ilhas que serviriam de entreposto para o trafico de escravos em 1760. O Leu, nos anos 1990, acabaria sendo comprado pelo Credit Suisse.

Até hoje, uma rua no centro antigo de Genebra se chama “Chemin Suriname”, em referência aos investimentos que banqueiros locais possuíam na América do Sul.

O passado escravagista nas ruas de Neuchatel

É em Neuchatel onde as construções estão mais associadas aos investimentos relacionados com a escravidão. Pela cidade, diversos palácios construídos por aqueles que se enriqueceram com o comércio hoje servem como prédios públicos.

Tanto a biblioteca da cidade como o Liceu, por exemplo, foram construídos graças ao dinheiro deixado por David de Pury, um dos financiadores do tráfico de escravo. A própria Câmara Municipal também foi erguida com a fortuna que ele deixou para a cidade.

Um dos principais museus da cidade ocupa um palacete deixado por James Ferdinand de Pury, investidor na produção do tabaco no Brasil em sociedade com Auguste-Frédéric de Meuron, oriundo de uma família de exportadores de produtos têxteis para a África e financiador do tráfico de escravos.

O prédio da reitoria da Universidade de Neuchatel era um palacete construído por Jacques-Louis Pourtalès, empresário que fez sua fortuna graças à troca de tecidos por escravos na África, além de manter propriedades em Granada, no Caribe.

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