Nelson Mandela não lutou sozinho contra o apartheid. A sua morte aos 95 anos assina o fim da linhagem parental da resistência – pacífica e armada – ao regime racista na África do Sul.
Quando Oliver Tambo morreu em 1993 devido a complicações após um enfarte, um Nelson Mandela prestes a tornar-se o primeiro presidente negro da África do Sul declarou na cerimónia fúnebre: “Aqui jaz perante vós o corpo de um homem que está ligado a mim por um cordão umbilical que não pode ser quebrado.”
Três anos antes, o homem que, com Mandela e Walter Sisulu, fundou a Liga Juvenil do Congresso Nacional Africano (ANC) em 1943, aterrava em Joanesburgo. “Tambo! Tambo!”, entoaram as centenas de sul-africanos negros que foram recebê-lo ao aeroporto Jan Smuts.
O momento não era para menos: depois de 30 anos a gerir o ANC (cuja liderança assumiu em 1967) do exílio, Tambo voltava ao país natal e discursava numa conferência do partido, a primeira dentro da África do Sul desde a ilegalização do ANC pelo regime do apartheid, em 1960.
Para muitos, sobretudo fora da África do Sul, Tambo é uma figura obscura e pouco conhecida. Mandela é tido, para todos os efeitos, como o pai da luta contra o regime de segregação racial, o pai da nação sul-africana que se ergueu contra o racismo da minoria branca. Mas sem os irmãos de armas, admitiu várias vezes o ícone global, a luta não teria ido a lado nenhum.
Desses irmãos de armas, Tambo foi um dos mais presentes na vida de Mandela. Foi com Tambo que criou o único escritório de advogados negros numa África do Sul segregada por raças. Com ele estudou na Universidade de Fort Hare, no Cabo Oriental; ambos foram expulsos dela em 1940 por “activismo político”.
Depois disso, os dois homens levaram 20 anos até concluírem que a resistência pacífica não era suficiente para defender os direitos dos negros e combater um regime impiedoso para com a sua raça.
A casa do então presidente do ANC, AB Xuma, tornou-se o ponto de encontro dos três homens e de outros jovens intelectuais negros que, nos anos 40, planearam a luta contra o regime e a abertura do partido a cidadãos comuns. Foi lá que, em 1944, Mandela, então com 26 anos, Tambo, com 27, e Sisulu, com 32, decidiram fundar a Liga Juvenil, que veio propor uma mudança de táctica no movimento anti-apartheid.
Se até então o partido tentara avançar com a causa através de petições e manifestações pacíficas, a juventude do ANC veio mexer nas peças do tabuleiro da resistência, propondo um programa de acção que advogava tácticas de luta mais assertivas, como boicotes, desobediência civil, greves e não-cooperação.
O massacre de Sharpeville, em Março de 1960, faria subir o tom da nova estratégia: a morte de 69 manifestantes negros desarmados às mãos das autoridades do regime multiplicou o apoio da população à luta armada. Levaria um ano até Mandela e os dois companheiros se afastarem da corrente pacifista defendida por Albert Luthuli, então líder do ANC, acabado de ser laureado com o Nobel da Paz, e abraçarem a luta armada.
Ocultada ou com um lugar menor nas centenas de obituários de Mandela que correm a web desde que o tata (pai) dos sul-africanos morreu a 5 de Dezembro, foi essa luta um dos mais fortes cordões umbilicais a uni-los.
“COMUNISMO ARDENTE” Foi em 1961 que os jovens fortes do ANC impulsionaram a criação do Umkhonto we Sizwe (MK), conseguindo evitar a expulsão de vários membros pela direcção luthulista, por se envolverem na luta armada. Mas apesar de não faltarem voluntários para a guerrilha, os meios técnicos e financeiros escassearam desde o início.
Muitos citam essa ausência de meios como a necessidade que aguçou o engenho do MK, desta feita através de uma aliança com o Partido Comunista da África do Sul (PCAS). Ultraminoritários, o que faltava aos comunistas em número de membros (uns escassos 500) era compensado pelo acesso privilegiado às ajudas de países socialistas como Cuba, China, União Soviética e algumas nações do norte de África. E aí entrou em cena um quarto homem.
Judeu nascido em 1926 na Lituânia que emigrou para a África do Sul aos oito anos, Joe Slovo foi um dos comunistas listados pelo Acto de Supressão do Comunismo, que o regime implementou em 1950. O triunvirato abordou Slovo para formar o que inicialmente seria um grupo autónomo, mas depressa passou a braço armado do ANC.
A ideia do grupo era pressionar o regime através de acções armadas e poucas mortes. Durante a noite, bombardeavam estruturas militares, centrais de energia, linhas de transporte, etc. Só se a estratégia falhasse, combinaram, é que o MK passaria ao terrorismo e à guerrilha urbana. Slovo tornou-se o principal comandante do grupo liderado por Tambo, sendo mais tarde convidado por Mandela a integrar o ANC e o seu governo após a queda do apartheid, em 1993.
Em “Um Longo Caminho Para a Liberdade”, a sua autobiografia, Mandela lembra Slovo como um homem do povo, “um comunista ardente sem o qual eu teria alcançado muito pouco”. Mas mesmo à data da sua morte, em 1995, lembra a filha de Slovo, Gillian, havia quem não o conhecesse. “Quem é aquele homem branco a apertar a mão ao teu pai?”, perguntou um amigo a um dos filhos de Khoisan X, conhecido activista sul-africano e amigo dos Slovo. “Aquele não é homem branco nenhum. É o Joe Slovo!”
“XHAMELA IS NO MORE” Se Tambo foi o homem que ensinou Mandela a “gerir emoções, a ser paciente e a não reagir demasiado rápido”, Sisulu foi o irmão que o “ensinou a aceitar pontos de vista divergentes, a criar paz com rivais e a encontrar consensos” (palavras de Mandela). Ainda antes de Madiba ser condenado a prisão perpétua, em 1964, por sabotagem ao regime, o em tempos secretário-geral do ANC (1949-1952) já conhecia os cantos ao regime: em 1952 foi preso por filiação no PCAS; após sucessivas interdições e detenções de familiares seus, refugiou-se na clandestinidade desde 1963.
Quando morreu, em 2003, Mandela voltou a discursar no funeral do amigo, que nasceu no mesmo ano que o ANC (1912) e morreu dez anos depois da partida de Tambo, nos braços da mulher, Albertina, também ela lendária fundadora da juventude do ANC e heroína dos sul-africanos negros.
“Xhamela [nome do clã de Sisulu] já não existe. Que viva para sempre!”, disse Mandela. “Os nossos caminhos cruzaram-se pela primeira vez em 1941. Durante estes 62 anos, as nossas vidas entrecruzaram-se, partilhámos a alegria e a dor de viver. A sua ausência esculpiu um vazio. Uma parte de mim já não existe. De certa forma, sinto-me enganado pelo Walter. Se uma outra vida houver para lá deste mundo físico, adorava ter sido o primeiro [a morrer] para poder recebê-lo. Mas a vida”, acrescentou, “determinou o contrário.”
Dez anos depois da morte de Sisulu, e 20 após a partida de Tambo, a África do Sul perdeu o último pai da luta anti-apartheid. Mandela é enterrado este domingo em Qunu, a aldeia que o viu nascer.