Trabalho escravo, esquecimento e a cachaça Ypióca, por Marcelo d´Salete

TEXTO MARCELO D’SALETE

Marcelo d´Salete
Marcelo d´Salete

150 anos da cachaça Ypióca

A memória pode ser utilizada para fins variados e demonstrar os interesses mais improváveis. Sob essa ótica a embalagem comemorativa de 150 anos da cachaça Ypióca ilustrada por desenho de Jean-Baptiste Debret evidencia uma visão oblíqua da história do negro no Brasil.

Nas últimas décadas grande parte do empenho dos grupos negros organizados foram no sentido de criar instrumentos para reaver sua própria memória enquanto grupo étnico e político. O fato mais emblemático dessa disputa simbólica e política talvez seja o 20 de novembro, dia de relembrar a história de Zumbi dos Palmares, data oficializada em vários estados brasileiros a partir da década de 1990. Os movimentos negros organizados escolheram essa data em contraposição ao 13 de maio, data em que é comemorado o fim da escravidão pela assinatura da Lei Áurea. Recusar o 13 de maio foi contrapor-se a ideia de que apenas a Lei Áurea decretou o fim da escravidão. É lembrar que houve resistências históricas negras na luta contra a escravidão, seja de forma direta, os quilombos, ou de outras maneiras mais sinuosas, mas nem por isso menos relevantes. Zumbi e o Quilombo dos Palmares, nesse sentido, foi alçado como o grande ícone da resistência negra a escravidão. E o 20 de novembro opõe-se a todo discurso de passividade e harmonia nas relações desniveladas entre africanos escravizados e os brancos fazendeiros.

Debret foi um artista francês que representou parte da realidade brasileira no início do XIX. Suas imagens são muito conhecidas em livros de história e em livros didáticos. Apresentam cenas de costumes do Rio de Janeiro, antiga capital do império, pela perspectiva de um artista europeu. Conhecedor dos ideais iluministas e artista de influência neoclássica, a escravidão certamente chamou sua atenção como elemento arcaico e exótico no Brasil, embora provavelmente soubesse o quanto a Europa estava envolvida com as origens do tráfico de seres humanos em toda América.

Hoje, aos nossos olhos, os desenhos e gravuras de Debret ilustram (com certo teor até mesmo de denúncia) os horrores causados pela escravidão, desumanizadora de negros e brancos. Provavelmente o autor não tinha esse objetivo, sua visão sobre o Brasil flertava com o estranhamento frente ao chamado novo mundo, capaz ainda de servir-se dos métodos arcaicos da escravidão.

Não é por outro motivo que causa estranheza ver uma das imagens de Debret ilustrar uma edição comemorativa da cachaça Ypióca. A composição do produto com o desenho sobressalta suas cores e, descontextualizando-o, parece pretender tornar a cena de labor em fato natural e harmonioso. A imagem sob o fundo verde da embalagem fragmenta a nossa história, aparta toda violência embutida no regime de trabalho escravo, mascara os sentidos sob a veladura eficaz da propaganda e do marketing. Hoje, esta é uma imagem que observamos sob a crítica contundente do nosso passado escravocrata. No entanto, no produto citado a imagem é suavizada a ponto de tornar-se nostálgica.

Esta cachaça estava num balcão de mercado ao alcance de todos, ou quase todos, os consumidores que queiram gastar cerca de R$ 30,00 para saboreá-la. Uma cachaça que pode fazer o gosto de muitos brasileiros de classe média. O produto exibia sua violência contra a memória. Estava exposto também aos olhos de quem pode ver para além das superfícies, para quem pode observar o tipo de discurso elitista e racista escondido em seu aparente silêncio.

Causa estranheza ver o desenho de Debret ser reproduzido dessa forma. Não apenas por ser uma imagem do século XIX em algo contemporâneo, mas pela forma como este produto lida com nossa memória. Ele deturpa, com glamour e perversidade, a historia. Esta imagem fora de contexto reafirma velhos preconceitos, atualiza-os. Parece indicar, de forma cínica, uma ausência de mudanças, como se fossemos os mesmos homens e mulheres cumprindo devotamente papéis de livres e escravizados. Os 150 anos glamourosos da marca confere prestígio ao desenho e seu significado, tornando a imagem uma alegoria de um passado igualmente “glamouroso”.

Ora, o desenho de Debret não pode ser suavizado a esse ponto. Nesse sentido vale pensar se é possível utilizar essa imagem de forma positiva sem que isso seja uma afronta a memória do negro e a própria história do Brasil como a vemos hoje? Além disso, é coerente uma marca comemorar sua origem, 1846, a partir de um registro do trabalho escravo? Há algo para se orgulhar? É preciso lembrar que o trabalho em canaviais era um dos mais exaustivos, onde os escravizados em poucos anos estavam incapacitados ou mutilados?

Ignorando os fatos e a história, o produto tenta nos vender ilusões em cores reluzentes. É provável que a marca tenha conseguido seu objetivo e a cumplicidade de grande parte de seus consumidores. É capaz que ela tenha produzido esse apagamento, esquecimento sistemático, da nossa tortuosa história. Talvez, mas não sem aproximar-se das visões mais conservadoras e retrógadas da nossa sociedade.

Elaborar mecanismos para esquecer ou apagar os fatos que constituem nossa formação não é instrumento de simples retórica publicitária. A imagem de Debret já ganhou força e história em nosso subconsciente. Aos nossos olhos, ela expressa algo mais, um ruído ensurdecedor da história. Algo que não pode ser esquecido. Ela em nada é passiva e glamourosa como o produto, falsamente, tenta nos iludir. Desse modo, nem mesmo uma boa dose da bebida pode apagar, por muito tempo, a violência implícita e explicita que a imagem sugere.

 

 

MARCELO D’SALETE é quadrinista, ilustrador, professor e pesquisador.

Fonte: Global Voice

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