Traço delas contra opressões

Umas da criadoras do Coletivo ZiNas, que publica quadrinhos feministas e realiza oficinas educacionais, e colaboradora do Lady’s Comics, selo pioneiro em encontros de quadrinistas na América Latina, Day Lima, 24, fala dessa arte como agente de empoderamento de mulheres, principalmente gordas e negras, e como a nova geração tem tratado depressão, relacionamentos abusivos e ansiedade em produções artísticas conscientizadoras.

Por LUCAS SIMÕES, do O Tempo 

Como você começou a desenhar e criar suas próprias histórias?

Sempre gostei de desenhar, desde pequena, mas sou formada em moda. Na faculdade, eu comecei a caminhar para o lado do desenho que eu sigo hoje, a questão de empoderar mulheres gordas e negras, muito pelo meu questionamento ao padrão de beleza visto na faculdade. No início, eu tinha vergonha de mostrar o meu trabalho na internet, mas as coisas foram fluindo quando fiz uma página no Facebook.

O Coletivo ZiNas, que trabalha justamente o empoderamento de mulheres, nasceu depois desse processo? Como foi a formação dessa rede?

O ZiNas surgiu em 2014, quando nós, mulheres, começamos a nos encontrar em feiras de publicações. Algumas já se conheciam, mas não tínhamos um vínculo muito grande antes. Eu e a Priscapaes (integrante do ZiNas) ingressamos nas feiras e nos vimos em menor quantidade ali. Decidimos nos reunir para ter mulheres ocupando esses espaços e dar visibilidade ao trabalho delas. Porque a gente não via as mulheres mostrando seu trabalho.

Sua obra é voltada para a valorização e o empoderamento das mulheres, principalmente gordas e negras. De que forma os zines ajudam na representação da mulher, especialmente as mais subjugadas?

A gente vê muito que o quadrinho sempre foi feito para homens. A representação da mulher hipersexualizada, principalmente em quadrinhos mais comerciais, como os da Marvel, DC e super-herói. O quadrinho do cenário independente feito por mulheres vem para desconstruir isso também. Falta muita representação de mulheres negras, mulheres gordas, trans. E nossas histórias são feitas de mulheres para mulheres, falamos de aborto em uma abordagem extremamente forte, de machismo, sexismo, enfim. A Aline (Lemos), do nosso coletivo também, tem um quadrinho incrível chamado “Melindrosa”, que fala sobre a libertação sexual da década de 1920. De Brasília, tem o “Garota Sirica”, que narra a história de três personagens se relacionando entre si, cada uma tinha um corpo diferente. As duas, antes, eram escritoras invisibilizadas.

Os quadrinhos têm trazido à tona dilemas sérios antes não debatidos?

Vou publicar meu primeiro quadrinho individual abordando isso. É uma história que fala sobre depressão. Vou falar mais desse sentimento, quase inexplicável porque muitas pessoas não entendem como é se sentir assim. Da mesma forma, é com a ansiedade. É uma sensação muito estranha e muito grave, pouquíssimo debatida. Eu vejo muito isso nos quadrinhos independentes das mulheres. Tem essa pegada de contar a nossa história, não só criar uma fantasia. Muitas colegas têm depressão. Eu já fiz quadrinhos sobre racismo e machismo porque convivo com isso. Estamos conectadas a esse tipo de pessoa, a favor delas.

Vocês realizaram as primeiras oficinas recentemente pelo Coletivo ZiNas: Vidas, Quadrinhos e Relatos. O acesso à educação artística incentiva as mulheres a contarem suas histórias?

Foi uma experiência muito gratificante, eu não tinha experiência em dar aula tanto assim, e tivemos um contato de um mês. A gente tinha mulheres negras, surdas, público LGBT. É um público mais excluído e todo mundo tem um trauma, algumas têm síndrome do pânico, outras passaram por relacionamentos abusivos, depressão. Foi forte estar em contato com as histórias, tanto que tínhamos psicólogo nas aulas. A ideia é que as pessoas se expressem. A partir da arte, a gente conseguiu falar de trabalhos incríveis, alguns bem angustiantes. Mas vimos nesse processo uma maneira de ajudar. A gente fica muito na internet, né? Pessoalmente, nas oficinas, é diferente. Elas construíram histórias a partir de seus problemas e vamos publicar os trabalhos em um livro, no fim do ano, com, pelo menos, uma ou duas criações de cada uma.

As oficinas renderam outras inspirações também, influências, produções de outras meninas que não publicavam seus quadrinhos?

Tem sido ótimo ver outras iniciativas rolando. Depois que o coletivo ZiNas surgiu, vimos mais mulheres fazendo zines. Inclusive, o Lunáticas, um projeto lindo de Belo Horizonte feito por meninas na faixa dos 15 anos. Elas começaram a fazer os zines próprios depois que viram a gente produzindo. E elas falam de feminismo dentro da escola, construindo um diálogo com alunos e professores. Isso deixa a gente completamente feliz. Recentemente, estivemos em Viçosa para dar uma oficina de fanzine para alunos de Comunicação. Existe a possibilidade de fazermos oficina em escolas também, trabalhando com faixas etárias bem menores. Teremos que organizar um material que seja mais fácil para eles, abordando assuntos do dia a dia deles.

Você também participa da Lady’s Comics, nascido na capital mineira e pioneiro em juntar mulheres do Brasil e do mundo em encontros e trocas de experiências sobre zines e quadrinhos. É possível perceber uma rede dessas produtoras de arte mais facilmente hoje?

Eu sou colaboradora da Lady’s Comics, publicando tirinhas no site oficial das meninas. É uma plataforma incrível porque gera conteúdo de mulheres quadrinistas e agrega pesquisadoras do tema, no Brasil e no mundo. Vamos ter o segundo encontro Lady’s Comics em julho com mulheres do Peru e da Argentina, por exemplo. Eu não sabia que tantas mulheres faziam quadrinhos, descobri pessoas incríveis. Na verdade, é preciso perceber que muitas mulheres faziam e não publicavam seus trabalhos. Hoje, a Lady’s Comics é um selo também, publica as meninas, é um incentivo para que seus desenhos saiam das gavetas.

Uma das grandes dificuldades da arte independente é escoar a produção, principalmente a artesanal, como é o caso dos zines. Como o Coletivo ZiNas lida com isso?

O zine surgiu no meio da ficção científica e muito através do movimento punk, claro. Ele vem de uma cultura marginalizada, de propositalmente não ser tão sofisticado. A vantagem é que hoje temos uma diversificação legal. Desde os mais bonitinhos, de capa dura, até os mais baratos, feitos de colagem simples. Muita gente tem certo preconceito ao olhar um zine mais básico. Mas eu gosto muito dessa ideia de manter o zine mais simples. Porque ele acaba sendo mais barato e mais acessível, difundindo mais as produções, principalmente nas feiras e pela internet, os dois principais canais.

O machismo, não só nas HQs de super-heróis, ainda é um problema sério para mulheres que começaram a ocupar um lugar com maioria histórica masculina?

Estamos em uma época em que não aceitamos mais não sermos representadas. Recentemente, a Marvel lançou a Miss Marvel, uma muçulmana. Queremos ver diversidade mesmo, personagens reais. A Marvel e a DC foram pressionadas na internet, tiveram que mudar condutas. Nós estamos evoluindo, temos que falar dessas questões. E somos uma geração que não vai ficar calada, não. A gente quer se ver ali, que nossa voz seja escutada, nossas diferenças reparadas, esse é o caminho.

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