Um poeta que o Brasil precisa conhecer

É tempo de protesto. Punhos ao ar, ruas em chamas, símbolos dessacralizados e monumentos supremacistas desprezados e depredados. Em plena pandemia do Covid-19, do epicentro da América Negra do Norte, explode mais um protesto negro. Aos gritos de “vidas negras importam”, a juventude assume o protagonismo no enfrentamento real ao racismo. Meio a essa turbulência necessária, nos chega o potente manifesto poético do sempre jovem Carlos de Assumpção.

Aos 93 anos, vigoroso na escrita e na récita, o decano da literatura negra brasileira frequenta saraus e navega nas redes sociais com a desenvoltura de um menino. Nesta sexta (26), por exemplo, participa do sarau virtual de lançamento do festejado Não Pararei de Gritar (Companhia das Letras), que reúne suas poesia completas. O evento será às 18h, com transmisssão no canal de YouTube da editora.

O título da obra refere-se aos versos “Mesmo que voltem as costas / Às minhas palavras de fogo / Não pararei de gritar”, de Protesto, seu mais celebrado poema. Lançado em 1956 e publicado em 1958, este poema-manifesto figura entre os mais representativos textos da Literatura Negra do país. Uma composição que apareceu há exatamente 64 anos atrás e continua atualíssima. “Senhores / Atrás do muro da noite / Sem que ninguém o perceba / Muitos dos meus ancestrais / Já mortos há muito tempo / Reúnem-se em minha casa”.

Carlos de Assumpção estreou em publicação individual somente em 1982, com o livro homônimo Protesto. De lá para cá, publicou mais 4 livros autorais (Quilombo, 2000; Tambores da Noite, 2009; Protesto e Outros Poemas, 2015; Poemas Escolhidos, 2017). Não Pararei de Gritar reúne esses cinco livros, acrescentando nove poemas inéditos, escritos entre 2018 e 2019.

Rompendo Barreiras

O poeta viveu para ver seus poemas, basicamente restritos nos espaços físicos e simbólicos na negritude militante e da pesquisa pontual, romperem as barreiras étnicas e raciais do mercado literário nacional. O conjunto de sua obra chega agora sob a sigla de uma editora de alcance nacional. Tal qual a escritora Conceição Evaristo, somente em idade avançada, ele deixa o ninho fértil e profundo que formatou sua expressão simbólica, para outros vôos. Sua voz, há muito, acolhida no seio do movimento negro, merece ser divulgada e distribuída como potência da poesia brasileira.

Nunca é tarde para a expansão de poetas de tal natureza, pois há sempre leitores ávidos de textos que brotem na divergência aos cânones, que não os refletem enquanto figurações e subjetividades efetivas. É isso que o leitor vai encontrar nessa reunião de poemas. Versos que estetizam, em temas e formas, a descolonização racial, social e política do povo negro brasileiro.

O debate colocado e sustentado por escritores e artistas negros ao longo do Século XX pelo Harlem Renaissance, Movimento da Negritude, Teatro Experimental do Negro, Cadernos Negros e outras frentes tensionou o embate em torno do binômio ética x estética. “Um dia talvez alguém perguntará / Comovido ante meu sofrimento / Quem é que está gritando / Quem é que lamenta assim”. (Protesto).

Poema Batuque

Amalgamados nessa tradição de busca de identidade artística e literária, para os poetas negros da linhagem de Assumpção, esses dois paradigmas são complementares. Seu discurso tem um duplo pacto, com a beleza afro-determinada e com a negrovisão de mundo. Destaco dois elementos essenciais no arcabouço desse volume que nos chega. Assunção desdobra poema a poema, livro a livro, declamação à declamação, os sentidos históricos do protesto negro, ao mesmo tempo que explora ritmos de matrizes negras. O cuidado com o equilíbrio desses dois elementos, entre outros, seguindo essa linha de reflexão, é que o filia aos grandes nomes da expressão poética formatada ao longo do Século XX. Nascido em 1927, sua existência perpassa essa longa trajetória de afirmação do discurso da Negritude.

“De repente / Duma viatura / Saltam sobre mim / Vários policiais (…) / Não me pedem documentos / Não me perguntam nada / Basta a minha cor”. (Crime) Demarcando aspectos do cotidiano do povo negro, em poemas, circulam ancestrais coletivos da luta e familiares próximos. “Orgulho-me dos meus avós / Que outrora / Carregaram sobre as costas / A cruz da escravidão”. (Meus avós) Faz sempre um convite a rever história, pensar presente e prospectar o futuro. “em terras de meus ancestrais / fui guerreiro / fui rei / fui faraó à sombra das pirâmides”. (Eu).

Ele elabora um inventário de lembranças necessárias ao processo de enfrentamento das opressões materiais e simbólicas. “Durante muito tempo / Andei à procura de mim mesmo / Pelos caminhos da dor.” (Amanhecer) E define a luta pela libertação do presente como produto de um processo histórico e de necessidade coletiva. “Saibam que a minha luta / Está enraizada nas lutas de meus avós / E também saibam que a minha luta / Não é só minha / É luta de todos nós.” (Minha luta). “Tambor / dá asas a nosso grito contido há séculos / grita.” (Tambor).

Sua poesia vai além da catalogação de heranças do passado e das situação cotidiana. Cuida também de imprimir negritude na construção da linguagem. “É Zum / É Zum / É Zum / É Zumbi / Zumbi de Ogum / Guerreiro de Ogum / Aqui.” (Presença) Constrói sonoridades, melodias e ritmos marcadamente negros. Há a busca incessante de uma textura afro. “Batuque é bom é bombom / Batuque bem temperado / Com tempero de pecado / É bombom é bom é bom.” (Samba de roda) Sem dúvida, trata-se de um poeta marcante no tocante à cadência swingada do verso. Um conceito que cabe literalmente para a obra de Assunção é o “poema batuque”. Possui inúmeros poemas que imprimem um pulso negro ao verso com maestria. O poema Batuque, que se tornou um clássico da poesia negra brasileira, diz: “Tenho um tambor / Tenho um tambor / Tenho um tambor / Tenho um tambor / Dentro do peito / Tenho um tambor.”

Penso que Carlos de Assumpção nos diz que o “grito do inconformismo” não se cala na boca preta. Esse monumento vivo da Literatura Negra brasileira merece nossa total atenção nesse período sombrio que vivemos. Precisamos olhos em vigília, para não sucumbir diante de um inimigo silencioso e devastador. Precisamos manter a boca aberta, gritando nosso protesto contra o inimigo que vem de antes e que vai permanecer depois da pandemia do agora.

* Nelson Maca é poeta, autor do livro Gramática da Ira

FICHA

Livro: Não Pararei de Lutar

Autor: Carlos de Assumpção

Editora: Companhia das Letras (173 páginas)

Preço: R$ 49,90 (livro) e R$ 34,90 (E-book)

Festival Na Janela: Jornadas Antirracista

Sexta – 26/06, às 18h

Performance de lançamento do livro Não Pararei de Gritar, de Carlos de Assumpção

Sábado – 27/06, às 15h

Educação e Infâncias Negras com Bel Santos, Kiusam de Oliveira e Otávio Jr.
Mediação: Juê Oliveira

Sábado – 27/06, às 17h

Racismo Estrutural e Institucional, com Cida Bento, Jurema Werneck e Silvio Almeida.
Mediação: Ronilso Pacheco

Sábado – 27/06, às 19h

Feminismos Negros – Homenagem aos 70 anos de Sueli Carneiro, com Bianca Santana, Djamila Ribeiro e Sueli Carneiro
Mediação: Flávia Oliveira

Domingo – 28/06, às 15h
Ficções contemporâneas, com Jarid Arraes, Jeferson Tenório e Jessé Andarilho
Mediação: Adriana Couto

Domingo – 28/06, às 17h

Cultura, Ativismo e empreendedorismo, com Eliane Dias, Monique Evelle e Nina Silva
Mediação: Flavia Lima

Domingo – 28/06, às 19h

Qual democracia?, com Acauam Oliveira , Samuel Gomes e Thiago Amparo.
Mediação: Flavia Rios

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