Vítimas da covardia masculina

É cada vez maior a quantidade de processos abertos contra homens acusados de humilhar, espancar e até matar as companheiras. Em Taguatinga, o Juizado de Violência Doméstica tem 3,5 mil em tramitação

THAÍS CIEGLINSKI

Sete anos de namoro, dois de casamento, um bebê de oito meses e muitas agressões. Esse foi o saldo do relacionamento que acabou em ocorrência, ação na Justiça e muita tristeza para a professora Fátima*, de 32 anos. “Por muito tempo, aguentei calada porque acreditei que ele poderia mudar. Depois que a minha filha nasceu e ele continuou me batendo, decidi dar um basta”, conta. O caso dela é um dos 3,5 mil em tramitação no Juizado de Violência Doméstica de Taguatinga, que, hoje, ocupa o primeiro lugar no DF em número de processos dessa natureza — no total, são 8.167.

A demanda crescente obrigou o titular do juizado a organizar um mutirão para atender com mais agilidade as vítimas. “As mulheres têm sentido a presença do Estado e, por isso, buscam mais o direito a uma vida livre de violência. Quando ela vai à delegacia e ao judiciário é bem atendida, percebe que não está sozinha nesse enfrentamento”, afirma Taciano Vogado, que assumiu o juizado em abril de 2012.

Dividido em duas fases, o esforço concentrado vai promover cerca de mil audiências — de instrução e julgamento de ações penais e de requerimento de medidas protetivas. A primeira etapa seguiu até 27 de junho, e a segunda está marcada para julho. A iniciativa recebeu apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no DF, que, por meio da Comissão da Mulher Advogada, reuniu 23 profissionais para trabalharem de forma voluntária no mutirão. “As brasilienses estão apanhando e morrendo, não há mais tempo a esperar”, diz a advogada Lúcia Bessa, uma das organizadoras.

A professora Fátima demorou para denunciar a violência, mas tem certeza de que não estaria viva se permanecesse ao lado do ex-marido. Em dezembro do ano passado, saiu de casa em uma madrugada chuvosa e procurou a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Com as costas marcadas pela pancada dada pelo então companheiro com uma tábua de passar roupa, chegou à polícia com a filha recém-nascida nos braços. “Todos foram muito prestativos, senti-me acolhida e tive a certeza de que não queria mais aquele homem ao meu lado”, lembra.

Com medo da reação do ex, ela passou uma semana na casa de amigos. Nesse tempo, teve atendido o pedido por medidas protetivas e voltou em segurança para o apartamento em Águas Claras. Rogério obedeceu à determinação de não se aproximar da professora “Ele se mudou daqui (do DF) e quase não vê a nossa filha, nem sequer liga para saber se ela precisa de alguma coisa. Acho isso lamentável, mas prefiro isso aos socos e puxões de cabelo.”

Fátima recebeu atendimento no Juizado de Violência Doméstica de Taguatinga, no qual cerca de 300 processos chegam a cada mês. “A demanda atingiu um patamar inadministrável, pois é a maior distribuição do DF. Recebemos de duas a três vezes mais ações do que Riacho Fundo e São Sebastião, por exemplo. É preciso desmembrar o juizado para permitir que o atendimento possa ter a mesma qualidade das demais cidades”, defende o juiz Taciano.

Mais informação

Hoje, o Distrito Federal tem 40 promotorias, 19 varas e uma delegacia dedicadas exclusivamente ao combate à violência doméstica. Em Taguatinga, a média é de 10 novos processos por dia. Para especialistas, o aumento da procura pelos serviços acontece porque, hoje, a mulher tem mais informação e noção dos direitos garantidos pela legislação, em especial pela Lei Maria da Penha.

Luciana*, 43 anos, só tomou coragem de procurar a Justiça depois de a patroa explicar a ela que o ex-namorado poderia ser preso pelas ameaças e pelos tapas corriqueiros. “Tinha muito medo porque pensava que não daria em nada”, explica. A faxineira aguarda ser chamada para a audiência em que deve pedir a prorrogação das medidas protetivas. Atendida pelo serviço psicossocial oferecido pelo Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT), ela tem consciência de que ninguém tem o direito de agredi-la. “Nem palavrão eu preciso ouvir, imagina levar um apertão.”

Apesar dos avanços, a capital do país ocupa a sétima colocação no ranking nacional de homicídios contra pessoas do sexo feminino, com média de 5,8 mortes para cada 100 mil mulheres. Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que, de 2006 a 2011, 9.585 homens acabaram processados penalmente por agredirem mulheres no DF — média de cinco ações por dia no período, o que garantiu o quarto lugar entre as unidades da Federação. “A violência é uma questão que está entranhada na cultura do país e do nosso povo, razão pela qual é necessário que se trabalhe para mudar isso na raiz, ou seja, nas famílias, na educação e na formação das nossas crianças. Em resumo, a solução decorrerá de uma atuação multidisciplinar, não somente da atuação do direito”, argumenta Vogado (leia Três perguntas para).

“Terror”

Apesar de Taguatinga ocupar hoje o primeiro lugar no ranking de violência doméstica, os dois maiores condomínios irregulares do DF — Sol Nascente e Pôr do Sol, ambos em Ceilândia — representam grande perigo para as mulheres. “A situação é de terror, muito pior do que se ouve falar. Muitas delas nem sequer sabem o que é a Lei Maria da Penha”, conta a advogada Lúcia Bessa.

A história da manicure Rosemeire Rodrigues, 40 anos, ilustra bem a rotina das moradoras dessas localidades. Em 2 de março, ela morreu com uma facada no pescoço, dada pelo ex-namorado. De acordo com parentes da vítima, o casal havia terminado o relacionamento cerca de dois meses antes do crime, e o suspeito não teria aceitado que ela se envolvesse em outro namoro.

* Nomes fictícios Assistência Em 2003, o GDF criou os Núcleos de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica para receber famílias das mulheres que passam pela Casa Abrigo e encaminhadas pelos juizados criminais. O serviço funciona de segunda a sexta, das 12h às 19h. Confira: Brasília (3961-4677); Brazlândia (3391-3148); Ceilândia (3371-9018); Gama (3385-6944); Núcleo Bandeirante (3486-6445 e 3386-2816); Paranoá (3369-8035); Planaltina (3389-3167); Samambaia (3458-1206); Santa Maria (3394-4110) e Sobradinho (3591-8873).

Três perguntas para Taciano

Vogado, titular do Juizado de Violência Doméstica de Taguatinga

A mulher de Taguatinga denuncia mais ou os homens da cidade estão, de fato, mais violentos?

Acredito que seja um pouco de cada coisa. Elas têm sentido a presença do Estado e, por isso, buscam mais o direito a uma vida livre de violência. Quando ela vai à delegacia e ao juizado, é bem atendida, percebe que não está sozinha no enfrentamento da violência a que está submetida e repassa essa informação a outras mulheres de sua convivência. Mesmo assim, ainda existe um grande número de homens que vivem como se ainda estivessem na idade das pedra. Pensam que são donos das mulheres (mães, esposas e filhas), daí, utilizarem-se de violência quando se sentem ofendidos ou têm algum posicionamento contestado.

A Justiça oferece assistência psicológica às vítimas e aos agressores?

O Tribunal disponiliza o serviço psicossocial no atendimento às mulheres vítimas de qualquer tipo de violência. Elas são ouvidas na própria audiência e também em atendimento individualizado ou em família. Além disso, o Poder Executivo do Distrito Federal tem um serviço de atendimento psicossocial para onde são encaminhadas algumas mulheres e seus supostos agressores, pois o atendimento é feito para ambos os lados da questão da violência.

Qual é o principal desafio no combate à violência doméstica?

É fazer entender que a solução para a questão da violência não está no processo criminal, em uma simples condenação. É uma questão entranhada na cultura do país, do nosso povo, razão pela qual é necessário que se trabalhe para mudar isso na raiz, ou seja, nas famílias, na educação e formação de nossas crianças.

Fonte: AMB

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