“Sexo é para amadores, gravidez é para profissionais”, a frase do ministro da saúde, Marcelo Castro, sobre os cuidados que gestantes deveriam ter diante da epidemia do Zika Vírus é um exemplo da distância perversa entre os centros de poder e a população.
por Daniela Lima do Huffpost Brasil
A divisão hierárquica entre mulheres “profissionais” e “amadoras” que o ministro fez reflete as recomendações do Plano de Enfrentamento à Microcefalia apresentado no ano passado.
O Plano sugere que as gestantes usem repelente, roupas que não deixem braços e pernas à mostra e que evitem frequentar lugares onde haja proliferação do mosquito.
Daí se pode concluir que, segundo a biopolítica atual, ser “profissional” é assumir individualmente a responsabilidade pela prevenção do contágio.É ter condições materiais para comprar repelentes e não morar em lugares derisco. Ser “profissional” é pertencer às classes dominantes.
Foucault falou pela primeira vez em biopolítica na conferência O Nascimento da Medicina Social, realizada no Rio de Janeiro em 1974. Ressaltando que o biopoder se articula à biopolítica controlando a vida por meio da intervenção do saber e da ação do poder: é o saber a serviço do poder.
No caso do Plano, o saber médico é instrumentalizado tanto para o controle dos corpos das mulheres como para deslocar o centro do debate das ações do governo para as individuais.
Além disso, a divisão feita pelo ministro mostra que a saúde pública não pretende afastar riscos igualitariamente. É possível pensar que instituições que deveriam ser neutras reproduzem, reforçam e até constituem desigualdades sociais. Para as mulheres “amadoras”, que parecem ser abandonadas à própria sorte, o biopoder funciona não só como forma de controle, mas de exclusão e até de eliminação real.
Não se trata de questionar a importância da divulgação das medidas de prevenção, mas de denunciar as tentativas de transformar medidas paliativas em principais.
O controle dos corpos das mulheres e de seu modo de vida passou a ter centralidade nas ações de prevenção do governo. Os mecanismos de poder transformam cuidado em controle, por meio de uma lógica punitivista: aquela que não aceitar se responsabilizar individualmente pela prevenção do contágio é imediatamente culpada pelas possíveis consequências – como é o caso da microcefalia e da síndrome de guillain-barré.
Dizem para passar repelente e usar roupas grossas como forma de prevenção, mas fica muito claro que estão dizendo: se eu me infectar, a culpa é minha por não ter usado calça, por não ter passado repelente direito e por não ter ficado dentro de casa a gravidez inteira. “Eu fico apavorada, mas como posso ficar trancada o dia inteiro?” (Relato de Mariana Braz, moradora de Campo Grande – Rio de Janeiro)
Deixa-se de discutir as sucessivas epidemias de Dengue – que, assim como o Zika, é transmitida pelo mosquito Aedes aegypt – decorrentes da incapacidade do governo de estabelecer planos de prevenção e contingência.
Silencia-se sobre a importante articulação entre saneamento básico, limpeza urbana, saúde pública e pesquisa científica, reduzindo a prevenção quase que inteiramente ao conselho perverso: “mulheres, não engravidem”.
Aconselhar as mulheres a não engravidarem é partir do pressuposto cínico de que toda gravidez é planejada. Como se existisse amplo acesso aos diferentes métodos contraceptivos, como se o governo garantisse aborto seguro e como se não existissem casos de estupro no Brasil.
O Plano também fala de “medidas emergenciais”, como visitas domiciliares para a aplicação de inseticida, mas elas têm se mostrado insuficientes. E não resolvem problemas, como o acúmulo de água em imóveis fechados para a especulação imobiliária, já que a inspeção deve ser feita na presença do proprietário ou do responsável pelo imóvel. Já são 3.893 casos de microcefalia e 49 mortes por malformação.
Mariana está com 16 semanas de gestação e mora na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde as epidemias de Dengue são anuais. Mesmo assim, não existe nenhum tipo de medida preventiva: “não vejo ação nenhuma do governo aqui, não vejo ninguém limpando terreno baldio, não vejo ninguém vindo aqui na minha casa botar inseticida no ralo, a gente mesmo é que tem que se virar e fazer o que acha certo”.
O biopoder enfrenta o Zika com um frágil conjunto de medidas de prevenção fundadas em interesses econômicos e políticos.
Medidas que enrijecem em normas de comportamento ineficazes, desumanas e que operam divisões hierárquicas da vida. É um jogo de terror e de transferência de responsabilidade para quem está em situação mais vulnerável.
Em última instância, o biopoder decide quem deixa morrer e quem faz viver. E sabemos quem são as primeiras a morrer.