Angolana lança livro de poemas no recôncavo

É com sorriso no rosto que Isabel Ferreira, 56 anos, costuma contar que seu trabalho foi reconhecido primeiro no Brasil do que em Angola. A ousadia de ser a primeira mulher angolana a lançar um livro na Academia Brasileira de Letras, em 2005, chamou a atenção da terra natal, de estudiosos brasileiros e de Portugal, onde vive há 15 anos. Na Bahia, a poeta, romancista e cantora encontrou o apoio do historiador Ubiratan Castro (1948 – 2013).  “Eu tenho uma relação muito forte do ponto de vista emocional com ele e com o estado, não só de gratidão, mas de regozijo”, diz.

Por: Verena Paranhos no A Tarde

Isabel tira a força dos versos e prosa tanto da infância difícil e da passagem pelo exército de seu país, quanto do olhar sobre seu povo e suas tradições. A cantora, poeta e romancista formada em direito apresenta nesta quinta-feira, na Universidade Federal do Recôncavo, em Cruz das Almas, seu mais recente livro de poemas, O Leito do Silêncio (Ed. Kujiza Kuami). Nesta entrevista, concedida em São Paulo, durante a Flink Sampa, ela conversou com A TARDE sobre literatura, preconceito, Brasil e Angola.

Qual a importância de seu trabalho ser hoje estudado pela academia, sobretudo a brasileira?

Eu escrevo por intuição porque não passei por uma escola, onde se dessem técnicas de escrita. Escrevo porque eu vejo o povo, escrevo com alma e com coração. Quando um acadêmico diz que a minha escrita é ótima para ser objeto de estudo, naturalmente isso me deixa encantada, porque me considero uma criança que tem um brinquedo e vai brincando e vai desfazendo e reconstrói. Neste brincar com as palavras eu vou divulgando hábitos e costumes do meu país.

Em 2009, você foi agredida por oito homens por causa da sua escrita. Foi neste momento que você percebeu a força da sua literatura e que poderia ir além?

Estou a falar de um país que esteve muitos anos em guerra, onde o processo de criação e de lançar um livro é tido como uma ousadia. Há questões que são consideradas delicadas para as mulheres escreverem, as questões políticas. E O Guardador de Memória (2008) denuncia essa questão através de um personagem. Ele era político e no dia em que perdeu o cargo fez um velório, porque a ideia que algumas pessoas em Angola têm é que, quando nós estamos num cargo político, somos os donos de tudo. Também existe aqui e em qualquer parte do mundo. Algumas pessoas provavelmente se sentiram mal, daí terem feito essa maldade comigo. Hoje, já num tempo diferente, eu sou reconhecida. Esfaquearam-me, ainda guardo as marcas. Mas para mim foi bom porque consegui me aperceber que, afinal, eu tinha algum valor na escrita, porque só se manda fazer uma maldade quando alguém incomoda. Então, se a minha escrita incomoda, mais do que nunca eu devo levá-la aonde as pessoas precisam conhecer a luta das mulheres angolanas.

Na mesa redonda da qual participou, você fez questão de amarrar o pano angolano na cintura. O que fica da tradição angolana na sua escrita?

Humildade e que eu saí do chão. Nós em África andamos descalços, temos o contacto com a terra, andamos com os panos da mãe liberdade e a gente protege mais o corpo. Então, o pano é também um símbolo de humildade para que as pessoas possam saber d’onde eu saí e se hoje estou aqui é porque eu saí do chão.

No Brasil, os escritores africanos mais conhecidos são brancos, como Pepetela, Agualusa, Mia Couto. Para você, essa é uma questão que precisa ser discutida?

Eu penso o Brasil como uma nação irmã, porque também tem esse problema da discriminação aqui. Ao publicar esses autores, é no sentido de “Bem, já que nós exaltamos a raça branca, vamos exaltar também da nação angolana esses autores”. Mas já há muitas pessoas interessadas em conhecer a literatura feita por negros. O que falta mesmo é editoras brasileiras que queiram divulgar os nomes dos autores angolanos. Nós trazemos um bocadinho, cem, 200, é pouco. O Brasil quer nos conhecer e nós temos que aproveitar este tempo cair hoje, que eu considero um tempo de graça, que o Brasil quer estudar o nosso material. Nós temos uma história comum, a história do tráfico negreiro. Saímos de lá como escravos e hoje estamos aqui como autores.

A literatura feita por negros é uma categoria ou apenas literatura?

É literatura. Eu penso que é diferente. Costumo dizer: um filho branco, que sempre teve leite, escola,  é diferente d’um filho negro que conheceu a escola muito tarde, que só viveu à base de chá. A minha vida não pode ser comparada com a de Pepetela. São situações completamente diferentes. Eu venho d’um meio e ele vem d’outro. Naturalmente que a visão dele do mundo é diferente da minha e isso modifica a escrita também.

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