Jônatas Conceição da Silva: Outros Palmares

OUTROS PALMARES

 Foi um dos objetivos da literatura negra brasileira, produzida a partir da década de setenta do século vinte, desconstruir o racismo instituído no Brasil e enraizado em todas as instâncias sociais do país. Esta desconstrução objetivava revelar uma versão da história de luta por liberdade ocorrida nos quilombos que foi ocultada, e reverter a imagem do negro “pai-joão- vagabundo preguiçoso- fedorento-inferior”, mostrada na maior parte da literatura brasileira feita segundo os cânones racistas do século dezenove. A partir daquela década, os escritores negros do país começam a se conhecer, formar grupos, como o Quilombhoje, em São Paulo, Negrícia, no Rio de Janeiro, e GENS – Grupo de Escritores Negros de Salvador, e trocar experiências através de encontros nacionais.

Outros palmares mostra, neste segundo volume de Outros sertões, três escritores afro-brasileiros que colocaram o seu talento a serviço, também, de desconstruir, via literatura, o racismo instituído no Brasil: o gaúcho Oliveira Silveira, o paulista Luiz Silva Cuti e o baiano José Carlos Limeira.

OLIVEIRA SILVEIRA2
POEMA SOBRE PALMARES (1972 – 1987) – fragmentos

Nos pés tenho ainda correntes,
nas mãos ainda levo algemas
e no pescoço gargalheira,
na alma um pouco de banzo
mas antes que ele me tome,
quebro tudo, me sumo na noite
da cor da minha pele,
me embrenho no mato
dos pelos do corpo,
nado no rio longo
do sangue,
vôo nas asas negras
da alma, regrido na floresta
dos séculos, encontro meus irmãos,
é Palmar,
estou salvo!
(…)
Para Palmares veio negro
que não gemia nos açoites.
E pelo mato escuro veio negro
que se escondeu na própria noite.
Pela selva fechada veio negro
para quem o Palmar foi clareira.

No rastro uns dos outros vieram negros,
cães acuados farejando o cheiro.
E negro roubado a esmo
do cativeiro para a liberdade,
do senhor para si mesmo.

LUIZ SILVA (CUTI)3
A PALAVRA NEGRO

A palavra negro
tem sua história e segredo
veias do São Francisco
prantos do Amazonas
e um mistério Atlântico
A palavra negro
tem grito de estrelas ao longe
sons sob as retinas
de tambores que embalam as meninas
A palavra negro
tem chaga tem chega!
tem ondas fortes suaves nas praias do apego
nas praias do aconchego

A palavra negro
que muitos não gostam
tem gosto de sol que nasce
A palavra negro
tem sua história e segredo
sagrado desejo dos doces vôos da vida
o trágico entrelaçado
e a mágica d’alegria
A palavra negro
tem sua história e segredo
e a cura do medo
do nosso país
A palavra negro
tem o sumo
tem o solo
a raiz.

AVE
Não sou urubu
pra comer a carniça do Ocidente
e a podre culpa dos brancos
Nem sou a pomba da paz
pra churrasquinho dos ditadores
Sou a ave da noite
sou ávida noite
que bate asas de vento
e traz um canto agourento
ao sonho dos opressores
e traz um canto suave
a despertar outras aves
pro revoar da justiça.

JOSÉ CARLOS LIMEIRA4
QUILOMBOS – fragmentos

Para Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez

SONHOS I
O rei de Portugal
mandou ao povo matar
se Palmares ainda vivesse
em Palmares queria estar
Cumbe na Paraíba
Alagoas, Macaco e Subupira
Mangueira, São Carlos
Portela na Avenida
são quantos?

Ontem morri

em Andalaquituche
Tabocas
Amaro
Acotirene
Hoje no Juramento
Borel
Turano
Salgueiro
Morro subindo morro
rolo ladeira cada dia
com decidido ar de
defunto novo
quando desce a noite
vejo em cada fundo de prato
o reflexo da luz da vela
e sonhos para devorar
NOTÍCIAS
Por menos que conte a história
Não te esqueço meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo.


Notas:

1. Professor de Literatura Brasileira e Afro-Brasileira na Universidade do Estado da Bahia -UNEB – Campus XX – Euclides da Cunha. Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia. Diretor da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê. Radialista do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia. Editor do Caderno de Educação do Ilê Aiyê. Membro do Conselho Editorial e um dos editores da revista Outros sertões – UNEB – Campus XXII – Euclides da Cunha. Autor de Vozes quilombolas: uma poética brasileira (2004).

2. O escritor Oliveira Silveira é natural de Rosário do Sul/RS. Nasceu em 1941. Formou-se em Letras pela UFRGS. Poeta, tem dez livros publicados e participa de antologias e coletâneas no país e no exterior. É, também, militante do movimento negro. Os fragmentos acima são do livro Poema sobre Palmares.

3. Cuti é pseudônimo de Luiz Silva. Nasceu em Ourinhos – SP, a 31 de outubro de 1951. Formou-se em Letras (Português-Francês) pela USP, em 1980. É mestre e doutor em Teoria da Literatura pelo Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP. Foi um dos fundadores e membro do Quilombhoje-Literatura e um dos criadores da série Cadernos Negros. Cuti tem uma obra individual extensa que abrange poesia, conto, teatro, novela juvenil e ensaio. Tem trabalhos publicados, também, em antologias no Brasil e no exterior. Os poemas acima são do livro Batuque de tocaia, 1982.

4. José Carlos Limeira Marinho Santos nasceu em Salvador, no dia primeiro de maio de 1951. Exerce atualmente o cargo de Chefe do Cerimonial da UNEB. Escreve e publica contos, artigos, crônicas e poemas desde os anos setenta, tendo trabalhos traduzidos para vários idiomas. Os fragmentos do poema “Quilombos” estão no livro Atabaques, 1979, publicado em parceria com o poeta carioca Éle Semog.

Fonte: Uneb.br

Matéria original: Jônatas Conceição da Silva: Outros Palmares

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