Racismo Prejudica Produção Científica de Pesquisadores Negros No Brasil

“As pessoas tendem a achar que discutir relações raciais, discutir sobre as questões da população negra, é falar sobre algo limitado. Não é”, diz a doutora em história Ana Flávia Magalhães Pinto

Por Valter Campanato Do Plantao Brasil

As pessoas tendem a achar que discutir relações raciais, discutir sobre as questões da população negra, é falar sobre algo limitado. Não é, diz a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto (Valter Campanato/Agência Brasil)

O dia 13 de maio marca a abolição formal da escravatura, mas o Brasil está longe de acabar com o racismo presente nas instituições. Nas universidades, locais de construção do saber, a questão ainda se perpetua na graduação, apesar do sistema de cotas, e mais ainda na pós-graduação e na pesquisa científica, onde são raras as ações afirmativas. Pesquisadores negros relatam à Agência Brasil as dificuldades que enfrentam na academia, desde o ingresso e a permanência até as barreiras para abordar temas que envolvem questões raciais. Para esses especialistas, a tentativa de invisibilidade de negros como protagonistas de processos acadêmicos impacta toda a sociedade.

As trajetórias se repetem em diferentes universidades e ambientes acadêmicos. A mestra em educação Verônica Diano Braga conta que não conseguiu, ainda na graduação, um professor que concordasse em fazer a orientação sobre o tema “O rap para a juventude de periferia”. Por conta própria, ela pesquisou, escreveu e apresentou o trabalho de conclusão de curso.

A doutora em história Ana Flávia Magalhães Pinto tentou ingressar no mestrado em comunicação social com o tema imprensa negra no século 19, mas não foi aceita. A recomendação foi que ela – que tinha graduação em jornalismo – tratasse do assunto no departamento de história, onde foi aceita. Atualmente, Ana Flávia é referência no tema, inclusive, na própria comunicação.

“Uma série de preconceitos levava a restringir [o estudo do tema] e isso acontece em várias áreas. Existe uma incapacidade das pessoas de compreenderem que falar da experiência negra no Brasil é falar sobre a população brasileira [majoritariamente negra]. As pessoas tendem a achar que discutir as relações raciais, discutir sobre as questões da população negra, é falar sobre algo limitado. Não é”, diz Ana Flávia.

“A questão do preconceito, do racismo começa quando eu me declaro mulher negra. Quando eu me declaro mulher negra, pós-graduada e professora universitária, ele aumenta muito mais”, diz Verônica, que trabalha em uma instituição privada onde, segundo ela, de 300 professores, três são negros, sendo ela a única mulher.

“Já houve situações em que fui a eventos e a secretária disse: ‘senhora, não posso te atender, estamos muito ocupados’, e eu era a palestrante principal. Eu deixo. Quando a pessoa que me convidou chega e pergunta porque eu não me apresentei, eu digo que tentei, mas não consegui. Há discriminação estética. As pessoas não estão preparadas para que uma mulher negra e jovem seja a doutora ou a mestre”, acrescenta Verônica, também conhecida no hip hop como Vera Veronika.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, mais da metade da população brasileira (52,9%) é negra (soma daqueles que se declaram pretos e pardos). A porcentagem, no entanto, não se repete em espaços como a academia. A Pnad mostra que 0,19% da população do país cursa mestrado ou doutorado. De um total de 387,4 mil pós-graduandos, 112 mil são negros – menos da metade dos 270,6 mil brancos.

Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Paulino Cardoso, defende maior presença de negros na pós-graduação (Valter Campanato/Agência Brasil)

“A pós-graduação é estratégica, pois é da pós-graduação que saem aqueles que vão dirigir o nosso país, os órgãos governamentais, as empresas brasileiras. São todos mestres e doutores os que ocupam os espaços de poder”, explica o presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Paulino Cardoso. “É um espaço onde a produção de conhecimento é reatualizada e, sem a presença dos estudantes afros, essa diversidade não é incorporada como um tema de pesquisa. E isso vai para todas as áreas”, acrescenta.

A dificuldade de ingresso aliada à escolha do tema de pesquisa são dificuldades dos pós-graduandos negros. Faltam linhas de pesquisa que contemplem questões étnico-raciais e faltam orientadores que se interessem pelos temas, analisam os especialistas entrevistados pela Agência Brasil.

O mestre em antropologia social e doutorando em transportes Paíque Duques Santarém avalia que os estudantes negros sofrem na academia quatro tipos de segregação. A primeira, já no processo de seleção, quando são feitas entrevistas orais por professores majoritariamente brancos. A segunda é o financiamento, a dificuldade em se manter em cursos que pedem, na maior parte das vezes, dedicação exclusiva, sem o auxílio financeiro da família. Ele cita ainda a convivência com colegas majoritariamente brancos e a necessidade de lidar com uma ciência que historicamente excluiu os saberes negros.

“São normais os casos de ser o primeiro, o segundo, o décimo estudante negro em um curso de pós-graduação. O isolamento ocorre no tempo presente, em que você está ali com poucos pares para compartilhar as suas angústias do ponto de vista racial. Além disso, não há pessoas que passaram por essa experiência e que possam te repassar vivências. E ainda tem a sensação de que talvez não vá ter ninguém ali posterior a você”, diz Santarém.

+ sobre o tema

USP oferece curso online de programação para alunos do ensino médio

USP oferece curso online de programação para alunos do...

‘Com a política de cotas, a universidade passa a ser uma possibilidade real’

Com a política de cotas, a universidade passa a...

Universidade de Coimbra usará enem para brasileiros

Estudantes brasileiros poderão ingressar na Universidade de Coimbra, em...

UNICAMP: 4 Cursos de extensão a distância na área da Educação abrem inscrições

A Escola de Extensão da Unicamp – EXTECAMP é...

para lembrar

Apoiar entrada de jovens negros na universidade é pensar sobre qual futuro queremos

Em um cenário de crise aguda, a educação continua...

Kelly se tornou professora na pandemia e luta por inclusão na sala de aula

Kelly Aparecida de Souza Lima, de 46 anos, tornou-se...

Joel Rufino fala da literatura nas escolas

Joel Rufino dos Santos é um dos nossos mais...

Matrículas das universidades federais caem pela primeira vez desde 1990

George Monteiro, de 20 anos, já tinha encaminhada sua...
spot_imgspot_img

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas, como imaginado. A estudante do 3º ano do ensino médio Franciele de Souza Meira, de...

Estudo mostra que escolas com mais alunos negros têm piores estruturas

As escolas públicas de educação básica com alunos majoritariamente negros têm piores infraestruturas de ensino comparadas a unidades educacionais com maioria de estudantes brancos....

Educação antirracista é fundamental

A inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas do país é obrigatória (Lei 10.639) há 21 anos. Uma...
-+=