Racismo, desigualdade e imprudência no teto do mundo

Sir Edmund Hillary (1919-2008), o neozelandês que se tornou um dos dois homens que subiram pela primeira vez ao cume do Everest, em 29 de maio de 1953 e escreveram seu nome na História, nunca deixou de prestar homenagens, manifestar gratidão e ajudar o povo sherpa. A mesma etnia nepalesa, de origem tibetana, à qual pertencia seu companheiro na conquista, Tenzing Norgay (1914-1986). O nome de Hillary é sempre lembrado; o de Norgay apenas por alguns. Só Hillary recebeu as múltiplas homenagens internacionais. Apicultor, virou até Sir. Norgay morreu como herói em seu país. Mas somente lá.

Na última sexta-feira, uma avalanche colossal, o acidente mais letal já acontecido na montanha mais alta do mundo (8.850 metros de altura), matou imediatamente pelo menos 13 sherpas e deixou outros três desaparecidos — em bom português, mortos mas com os corpos soterrados por toneladas de neve, gelo e rochas e que, possivelmente, jamais serão encontrados. O número de feridos até agora não foi divulgado com precisão. E a quantidade de mortos pode aumentar, há escaladores na montanha que estimaram, pela internet, em 25. Em apenas um único evento.

Mas a notícia foi anunciada apenas no dia e depois praticamente esquecida pela comunidade internacional, cabendo a ela pequenos registros. O motivo: as vítimas são sherpas, tão vítimas de racismo quanto negros, índios e outros povos que amargam anos de exploração em seus países de origem. Muitos dos turistas-escaladores que vão ao Everest e outras grandes montanhas dos Himalaias os veem pouco mais do que como meio de transportes, criadores de caso. O resultado é fácil de averiguar pela ausência de notícias a respeito da tragédia de agora, a maior da História.

Em comparação, a chamada temporada assassina de 1996, tema de numerosos livros, documentários e filmes e uma infindável discussão, matou 15 pessoas, mas em acidentes diferentes. A maioria das mortes causadas pela ambição desmedida de clientes como a socialite americana metida a aventureira Sandy Pittman (que, por sinal, sobreviveu, mas obrigou seus guias a carregarem centenas de quilos de equipamentos). Ela pagou em dólares. Seus guias, com a vida. A história da tragédia de 1996 ficou mundialemente conhecida pelo livro “No ar rarefeito”, do americano Jon Krakauer, que demonizou o alpinista russo Anatoli Boukreev, o grande herói daquela temporada, que levou anos para ter sua memória reabilitada graças à xenofobia do escritor.

Uma avalanche com força de bomba atingiu em cheio uma das áreas mais perigosas da montanha. Ironicamente, ela não fica na chamada zona da morte, acima dos 7.000 metros, quando o oxigênio começa a ficar perigosamente escasso — arriscado ao ponto de matar rapidamente. Ela atingiu em cheio os sherpas, quando eles preparavam o caminho para o acesso de escaladores ocidentais, seus clientes, em Khumbu Icefalls, a 5.486 metros de altitude, um miserê para os padrões colossais do Everest.

Acontece que Khumbu Icefalls, na face Sul, pelo lado nepalês é uma das áreas mais perigosas da montanha. É um mar gelado de fendas (crevasses) profundas, muitas delas ocultas. Desprendimentos de grande blocos de gelo são comuns. E ali é a rota preferencial de avalanches, como essa que matou os sherpas. Eles foram atingidos por volta de 6h30m, escuro ainda na montanha. Fixavam cordas para que seus ricos clientes ocidentais pudessem ultrapassar as gretas letais. Num acidente assim, não há saída.

Sem os sherpas a maioria das centenas de pessoas que buscam todos os anos o Everest jamais conseguiria chegar ao meio da montanha, quanto mais ao cume. Até a sua morte, Hillary reclamou das hordas cada vez maiores de escaladores abonados que tentam a sorte e a glória de chegar ao teto do mundo. A mesma opinião tem outro deus do alpinismo de alta montanha, o italiano Reinhold Messner, o primeiro ser humano a subir sem a ajuda de oxigênio suplementar (em companhia do austríaco Peter Habeler) em 1978, e o primeiro a fazê-lo sozinho, em 1980. Outros escaladores de elite têm opinião semelhante.

Uma legião de turistas abonados e despreparados paga bem mais do que US$ 50 mil por expedição, sem garantia de chegar ao cume. E esse preço pode ser ainda maior dependendo do nível de conforto e da capacidade técnica dos guias sherpas e ocidentais. Muitos jamais teriam chegado lá sem a força, a adaptação à altitude da montanha e o conhecimento dos locais.

São eles que fixam cordas, carregam os equipamentos mais pesados, montam acampamento sob ventos ferozes (rajadas de mais de 100km/h a temperaturas negativas), em encostas íngremes. Sobretudo, os sherpas conhecem bem a montanha e milhares de anos de evolução os tornaram geneticamente menos vulneráveis aos males da altitude.

Os sherpas recebem até US$ 5 mil por ano, num país onde a renda é de US$ 700 no mesmo período. Mas são miseravelmente pagos, para uma profissão cujo risco de morte está entre os maiores do mundo. No entanto, o dinheiro que recebem sustenta suas famílias um ano inteiro, numa terra isolada, de clima e relevo hostis, onde outras fontes de renda são uma impossibilidade. Plantas comestíveis não nascem por lá. E ninguém suporta leite de iaque a vida inteira.

Muitos já fizeram o cume muito mais vezes do que escaladores ocidentais famosos, que só subiram porque tiveram a ajuda de guias sherpas. O recordista mundial do Everest é Apa Sherpa, que em maio passado chegou ao cume pela 21ª vez.

Restou aos sherpas chorar seus mortos. Muitas famílias perderam junto com os entes queridos sua única fonte de renda. Ano a ano cresce o número de turistas-escaladores — ano passado foram mais de 500, que chegaram a engarrafar algumas das vias mais perigosas da montanha por sua inépcia técnica e física, que põe em risco não apenas as suas vidas mas a de todas as pessoas atrás na fila.

Não para de crescer o número de empresas especializadas em levar turistas e escaladores para o Everest e outras das 13 gigantes, que compõem o Olimpo das 14 montanhas (todas nos Himalaias-Karakoran) com mais de 8.000 metros de altura. E também não para de aumentar a tensão entre nativos e ocidentais. Líderes sherpas já se mobilizam para uma moratória na temporada de escalada deste ano, que acaba de começar no Everest.

A crise que expôs o racismo, a ambição por lucro e a transformação do Everest em parque temático de alto risco, que vem se insinuando há alguns anos, neste 2014 acaba de tomar um novo rumo. Se trará mais segurança à montanha ou se tudo continuará como antes talvez dependa do próprio Everest — ou Chomolangma, para os tibetanos, a deusa mãe do Universo.

Fonte: O Globo

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