A democracia que queremos precisa ser adjetivada

A história feita de ascensos e dissensos nos coloca agora diante de um momento de recrudescimento das forças conservadoras que pavimentam caminho para retirada de direitos conquistados.

Se o golpe parlamentar sofrido em 2016 nos mostrou algo é justamente que direito conquistado não significa direito permanente.

Neste momento, os debates que pautam a defesa da democracia aparecem intensamente de todo os lados. Mas afinal, a democracia existente antes do golpe era ideal? Sabemos que não.

A democracia apenas como um método não atendeu a resolução de todas as mazelas da sociedade, muito menos uma democracia jovem e frágil como se mostrou a nossa.

Como a sociedade se posiciona diante de questões estruturantes como o racismo e o patriarcado – colunas cervicais das relações de poder perpetuadas pelo capitalismo – nos demonstra um abismo existente entre a democracia que temos e a que queremos.

Sem dúvidas, vencer esse momento de crise da democracia passa por construirmos a unidade de grupos, coletivos e pautas em torno dos pontos em comum. No entanto, como devemos preservar as autonomias para que não façamos pactos frouxos?

Boaventura Souza Santos, em seu recente livro “A difícil democracia”, fala sobre como hoje precisamos trabalhar na reinvenção da democracia com adjetivos. Defender apenas a democracia  não é o bastante. Temos que pontuar o que ela seria e o que defenderia.

Do lugar onde vejo o mundo, sendo mulher negra, mãe e periférica, leio isso na certeza que precisamos construir uma democracia anti-racista, anti-machista, anti-lgtbtfóbica, ou seja, uma democracia que combata sistematicamente as desigualdades.

No momento em que diferente setores se unem para ressignificar o que seria esse bem comum para todos, e com a desconfiança de quem vê sistematicamente as populações marginalizadas sendo retiradas dos debates políticos, reafirmo que não há tempo para criarmos pactos frouxos.

Não podemos achar que a centralidade dos debates devem ficar em torno das eleições deste ano. Nesses momentos de potência, quando sentamos em roda para “lembrar o passado e sonhar o futuro”, como nos ensinou a escritora moçambicana Pauline Chiziane, percebemos que é em momentos de dissensos, durante a crise, que temos a possibilidade de nos reinventar enquanto país.

É importante nós todos nos consideramos parte do problema, para tornar possível sermos partes da solução que passa pela ampla participação popular.

Para isso não há fórmula mágica. É importante entendermos que qualquer solução passa pela articulação entre raça, gênero e classe como tão potentemente nos ensinou a figura de Marielle Franco, parlamentar executada sumariamente.

Raça, gênero e classe precisam estar no centro da nossa preocupação quando sonhamos uma democracia que não seja distante do seu povo e que sirva a ele, e não que garanta direitos aos ricos enquanto penaliza os mais pobres.

Para essa reflexão precisamos encarar, sem medos, os limites da democracia dentro do capitalismo. Boaventura vai afirmar que “radicalizar a democracia significa intensificar sua tensão com o capitalismo”.

Neste sentido, é importante sonharmos alternativas ao capitalismo, onde se enquadra o conceito do Bem Viver, nascido no seio dos povos indígenas do cone Sul. No Brasil, desde a grande Marcha das Mulheres Negras que ocorreu em 2015, por intermédio de uma lutadora do Pará, Nilma Bentes, as mulheres negras ressignificam o conceito do Bem Viver, apresentando-o como uma proposta para contrapor o modelo capitalista neoliberal.

O Bem Viver surge para descolonizar a democracia e devolver-lhe seu sentido original “do povo para o povo”. Diferente do que apresenta algumas concepções de esquerda que colocam a diversidade enquanto recorte dentro da luta contra o capitalismo, o Bem Viver traz a diversidade como fundamento.

A lógica desenvolvimentista do capitalismo trouxe consigo a ocidentalização do mundo. As sociedades eurocêntricas, alicerçadas nas ideais de branquitude, têm como base do seu desenvolvimento a concentração de poder, o acúmulo de riqueza, a exploração como sustento da sociedade, o domínio de outros povos e o massacre epistêmico de tudo que não é branco.

Esses elementos se traduzem na construção de um Estado desigual. Um Estado que desconhece as alteridades e a transforma toda e qualquer diferença em desigualdade ou em produto para seu lucro.

Neste cenário, a palavra democracia virou acessório de luxo. É preciso estabelecer práticas de reinvenção da democracia que tenham como protagonistas classes ou grupos sociais marginalizados como negras e negros, indígenas, mulheres, população rural, entre outras.

Para isso, fica aqui o apelo: ouçam o que vem sendo dito pelas mulheres negras. Há décadas elas estão articuladas, pensando a sociedade livre e justa não só para elas, mas para todos.

Na Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, grupo que tenho a honra de somar e aprender, dizemos que nossos passos vêm de longe e quando uma mulher negra avança ninguém fica para trás.

Há tempos mulheres negras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e tantas outras têm formulado as bases desse novo e necessário marco civilizatório para o Brasil.

Essas bases trazem para a centralidade política o que denunciam e apontam os movimentos negros e movimentos de mulheres. E o que nós, negras que trazemos nos nossos corpos a intersecção dessas pautas, apontamos como prioritário.

Aqui faço um recorte bem específico e atual: é importante que outras classes sociais para além dos grupos populares e grupos políticos não negros se debrucem sobre a pauta mais cara da comunidade negra em sua história no Brasil e em outros territórios diaspóricos – o genocídio negro em curso instrumentalizado por meio da a letalidade policial e o encarceramento em massa estimulado por uma política de drogas que criminaliza a pobreza e juventude. O genocídio negro precisa ganhar peso na agenda política nacional.

Como tomamos essa debate e comprometimento em nossas mãos? Nesse momento em que a grande e ampla gama de partidos políticos demonstram que não possuem força motriz de transformação social, precisamos ficar atentos.

Não podemos mais ficar refém de pessoas, ícones ou personalidades. Somos testemunhas que uma pessoa se prende, se mata, se vende… No lugar de salvadores, precisamos de projetos políticos que contemplem a pluralidade das nossas vozes. Ou seja, um novo marco civilizatório que construa uma democracia  e uma sociedade que não seja palco de intensas desigualdades.

Se a política institucional está mais voltada à lógica capitalista regida pelo mercado do que voltada à lógica do Bem Viver, que sonha a reinvenção da  democracia, temos que reinventar também a política institucional. É inadmissível que negros e negras que se colocam neste espaço sejam tratados como token de uma diversidade que não se concretiza na prática. Devemos nos perguntar seriamente, e questionar nossos companheiros com relação à corrida eleitoral posta. Quais candidatos e candidatas recebem financiamento dos partidos? Com que pautas? Temos aí um elemento real para medir o comprometimento com a luta antirracista.

Uma democracia baseada na exploração não é real e o silêncio perante essas contradições também protege muitos tiranos.

É definitivamente nesses momentos de falta de perspectiva nos campos da macroeconomia e macropolítica que nós, o povo, precisamos estabelecer pactos reais, onde nossas diferenças sejam nossas potências. E que elas não nos limite, mas sim sejam as válvulas propulsoras de mudanças necessárias. Vamos nos permitir à radicalidade de sonhar uma nova sociedade possível.

*Juliana Gonçalves é jornalista e ativista dos direitos humanos com foco em raça e gênero. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo e a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. É membro do Pacto pela Democracia.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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