Bem-vindo a Marly Gomont, uma comédia de gargalhar

Foto Divulgação/ Marly Gomont

Havia uma frase ouvida a certa hora de todos os dias, num específico local, como se o sino do campanário. Ficou marcado em mim o seu cheiro de ameaça, feito as tatuagens que cobriram o corpo de um dos buendía, marcas a ferro que diziam de sua condição de criminoso, de sua estada clandestina num navio, que indiciavam seu status de estranho.

por Eliane Marques, do Nonada 

E havia um dedo gordo e uma cara de pavor que apontavam para o meio do meu nariz enquanto a frase repetida como mandamento apócrifo que devesse ser observado com todas as diligências da cavalaria norte-americana.

Durante o sermão, diante do qual não havia saída pela direita ou pela esquerda, eu tinha vontade de passar a tesoura de aço nas minhas tranças e enterrá-las, uma a uma, na terra solta do pátio, onde se depositavam os excrementos das galinhas, por que sobre os ombros, mais débeis que os de atlas, um peso hercúleo.

Não sei se assistiram ao longa-metragem Bem-vindo a MarlyGomont (2016), de Julien Rambaldi. Talvez tenham achado engraçadinho o fato de durante a maior parte do filme, classificado como comédia, à família considerada outsiderter sido imposto o ônus de demonstrar a sua humanidade aos proclamados estabelecidos, conforme nomenclatura de Norbert Elias.

O médico Seyolo Zantoko, natural de Kinshasa, depois de concluir um curso de Medicina em Paris, desloca-se com sua família ao interior francês. Aí ele deverá provar que é o melhor médico do mundo para que o admitam apenas como médico e não como um feiticeiro e, além disso, para que os locais se disponham a pagar a consulta. Afinal, para que nós negrxs precisaríamos de dinheiro?

Sivi Zantoko, filha de Seyolo, deverá provar que joga futebol muito melhor do que qualquer homem adulto, inclusive, para integrar o time, salvá-lo do fracasso e, em troca desses serviços, permanecer na cidade.

Kamini Zantoko, irmão de Sivi, deverá estabelecer laços de amizade com a menina “local” desprezada por seus patrícios por sofrer de uma doença de pele. A menina era a negra do povoado antes da chegada dos “verdadeiros negros”, pois, como diz Freud, estreitados os laços entre os “de dentro”, é preciso alguém tido como “de fora” para golpear. Mais tarde a menina foi branqueada pelo médico-feiticeiro.

Ane Zantoko, no papel de mulher e trabalhadora, atribui-se a função de questionar e de suportar toda a comédia, baseada em fatos reais.

Certo dia, Seyolo Zantoko, desesperado por não conseguir provar sua humanidade aos brancos locais, depois de tanto estudo e de tanto esforço, recuperou a frase que eu pensei fosse minha, ao asseverar a Sivi e a Kamini: os negros têm que estudar.

Coube a Kamini dar um basta a essa ameaça ao perguntar para Seyolo:

– E por que os negros precisam estudar tanto?

A frase-ameaça, quebrada por Kamini, toma como certa a esperança de que, se os negros estudarem mais do que os não-negros, serão aceitos em algum lugar diverso do que o para eles reservado, embora o lugar não-reservado continue branco e nós (negrxs) sempre no descasque das batatas.

Seyolo Zantoko, por que deveríamos atuar como se fôssemos réus num processo penal em que temos de provar a nossa “inocência” acerca de qualquer coisa, como Josef. K, de O processo, e jamais se demanda dos brancos que, ao menos, questionem a acusação?

Seyolo, talvez você não goste, mas tenho vontade de fazer como os rappers e chamar Kamini de “mano” e cumprimentá-lo com aquele gesto de bater ombro no ombro e cantar com ele… olha o pretinho vendo tudo do lado de fora…

Sim, por que deveríamos estudar tanto para, em tese, não sermos objeto do racismo ou do preconceito racial enquanto os brancos mais estudados, aí, às soltas, praticando atos racistas às claras e, pior, sendo acobertados por um discurso, também de gente estudada, viajada e lida, que nega a estrutura social racista e os discursos que, de plano, a evidenciam, como esse – é coisa de preto e os negros têm que estudar!

Realmente é uma comédia de gargalhar às escuras.

*Eliane Marques é escritora, editora, poeta, Prêmio Açorianos de Literatura de 2016, na categoria poema, com o livro “e se alguém o pano”. Auditora Pública Externa do TCE/RS.

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