Um cinema carente de cor

Ações coletivas de pesquisadores e artistas debatem a desigual presença do negro na cinemtografia do Brasil

por Antonio Laudenir no Diário no Nordeste

20 de julho de 2018 – Filme “Kbela” (BRA), de Yasmin Tainá.
– CADERNO 3 – 21c30601 – ALILE DARA

Preciso, Zózimo Bulbul (1937-2013) alertou sobre a vital necessidade do povo negro contar as próprias narrativas. Com trajetória marcada pela construção de uma cinematografia afro brasileira, para o ator e diretor era urgente a necessidade de contar essas vivências através do campo audiovisual. Entretanto, além de estarem configuradas através dos filmes, precisam ser contadas por quem as viveu e sentiu na pele.

Compreendendo e inseridos totalmente neste espírito, o grupo Negritude Infinita de Fortaleza vem promovendo ações pontuais no sentido de evidenciar a arte cinematográfica empreendida por realizadores e realizadoras negras. O mais recente esforço nesse sentido começou na última sexta-feira (13), com a publicação do “Mapa do Cinema Negro no Brasil”.

A plataforma vasculha e identifica os locais onde mostras, festivais e projetos voltados para a difusão do cinema negro no Brasil acontecem. O objetivo é formar uma rede integrada, permitindo mecanismos de parcerias entre produtores culturais, agentes independentes, instituições, sejam elas púbicas ou privadas, grupos e coletivos artísticos. O mapa é dividido em quatro tópicos: “Festivais e Mostras”, “Instituições”, “Projetos e Ações cineclubistas” e “Grupos e Coletivos”. Cada uma destas atividades é catalogada individualmente e ao se clicar nos ícones marcados no mapa o público pode conferir as descrições e informações de cada trabalho. Associações, fóruns, coletivos, cineclubes e mostras são reunidas e iluminadas.

Em novembro de 2017, a Vila das Artes e o Centro Cultural Bom Jardim foram palco da “Mostra Negritude Infinita”. A curadoria de Clébson Oscar e Leon Reis repercutiu na exibição de 10 curtas-metragens, divididos em duas sessões. Em comum ao material, a maioria dos filmes foram produzidas nos últimos dez anos e eram inéditos ou exibidos poucas vezes em Fortaleza. O debate após as sessões tem o objetivo de discutir as características desse conjunto dos realizadores envolvidos.

É Clébson quem estabelece um balanço preciso sobre os dias onde a mostra foi realizada. A ação foi o pontapé para a construção do que a “Negriute Infinita” realiza hoje e dos planejamentos para as próximas edições e projetos. Essa troca, assevera o organizador, foi pontuada por momentos únicos.

“No Bom Jardim, por exemplo, tínhamos muitas crianças assistindo os filmes. A maioria era de crianças negras e foi lindo ver elas todas ali assistindo as obras e tendo um contato com uma imagem/filme que se aproxime do que elas vivem”, resgata o realizador.

Outro destaque da Mostra foi percebida durante a exibição do curta-mettragem “Kbela” (2015), de Yasmin Thayná. Realizadora da periferia do Rio de Janeiro,a cineasta dividiu sua experiência com o público local e mostrou a força e urgência de filmes realizados e protagonizados por pessoas negras. A obra, garante, Clébson, agitou as discussões sobre representatividade, visibilidade e também questionou o próprio circuito de festivais e as suas curadorias.

“‘Kbela’ foi muito recusado no começo pelos grandes festivais brasileiros, mas depois que obteve uma grande visibilidade, sobretudo por conta do movimento negro, ele passou a ser finalmente reconhecido e valorizado, indo até para festivais fora do país. É um exemplo bastante nítido de como o racismo institucional funciona no cinema brasileiro e tantos filmes também passaram/passam pela mesma situação. Mas acredito que a coisa tem mudado com o tempo por conta da força que o movimento Negro tem empregado, cada vez mais forte e afrontoso”, aponta Clébson.

Roteirista e realizador audiovisual, produtor cultural, negro,nascido e residente na periferia de Fortaleza, Clébson é aluno de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Sobre a iniciativa do mapeamento, ele afirma que a plataforma cataloga essas iniciativas de forma a potencializá-las. Outro expediente é discutir políticas públicas para o audiovisual como um todo, principalmente no que tange à difusão de obras nos vários circuitos de exibição.

“Temos uma distribuição muito ruim e desigual entre os filmes brasileiros, os blockbuster de comédia, por exemplo, praticamente ocupam todo o pouco espaço que os filmes brasileiros têm nas salas de cinema, deixando todo o resto a míngua. Precisamos que mais filmes brasileiros entrem nessas salas. É essencial a presença de cineastas negros dentro desse debate da distribuição, pois se já é difícil uma cineasta negra dirigir um longa-metragem, mais difícil ainda é esse filme ir para a sala de cinema”, finaliza o jovem realizador.

20 de julho de 2018 – Filme “Cores e Botas” (BRA), de Juliana Vicente.
– CADERNO 3 – 21c30602 – NLVL

Cenário

Mesmo relativamente novo, quando comparado ao surgimento de outras expressões artísticas, o cinema consegue trafegar de maneira estreita com a história do tempo onde é produzido. Mesmo encarada muitas vezes como indústria milionária, onde consumir e até mesmo trabalhar atrás das câmeras segue como território pouco acessível a maioria da população, a sétima arte consegue propiciar determinada influência dentro da sociedade.

Ao estar associado à bagagem e ideologia cultural de quem o produz, o cinema se projeta como espelho do ambiente e do instante onde é criado. Ao buscar novas significações ancoradas na vida real, a cultura cinematográfica constrói e esgarça representações mediadas pela visão dos autores e grupos sociais envolvidos na obra.

Diante de um País absurdamente segregado como o Brasil, onde 54% das pessoas é composta por negros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o cinema brazuca é majoritariamente dominado e desenvolvido por homens brancos. Ao se ter contato com uma análise mais profunda dos títulos nacionais ao longo das décadas, o saldo desse cenário é vergonhoso.

Quem dá este alerta é o levantamento “Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016”, divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) em junho último. Produzido pela Coordenação de Monitoramento de Cinema, Vídeo Doméstico e Vídeo por Demanda, da Superintendência de Análise de Mercado (SAM), esta é a primeira vez que um recorte dessa natureza é promovido pela agência.

O estudo denuncia as desigualdades ainda reinantes dentro do audiovisual brasileiro. A instituição analisou 142 filmes nacionais que chegaram ao circuito comercial em 2016. Destes, 97 são obras de ficção, 44 integram o gênero documentário e apenas um título figra como animação. Como citado anteriormente, os homens brancos permanecem com maior espaço no mercado. Das obras analisadas neste período, eles são maioria como diretores (75,4%), produtores (59,9%) e na formação dos elencos.

As mulheres brancas assinam a direção de 19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram guiados por homens negros. Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. Só figuram na lista na área de produção-executiva, ao lado de mulheres brancas ou equipes mistas equivalendo aos percentuais de 1% e 3%, respectivamente.

Cada filme e as respectivas funções de direção, roteiro, produção executiva e elenco foram analisadas quanto a identidade de gênero e raça/cor. Já as profissões de direção de fotografia e direção de arte tiveram classificação sob o aspecto da identidade de gênero. No total, foram analisadas 1.326 pessoas envolvidas no cinema brasileiro de 2016.

Excludente

O domínio de realizadores brancos vai além da direção e engloba outras posições de liderança no cinema. 68% deles assinam o roteiro dos filmes de ficção, 63,6% dos documentários e 100% das animações brasileiras. Os homens dominam também as funções de direção de fotografia (85%) e direção de arte (59%). Essa constatação evidencia que as histórias exibidas nas telas do país, produzidas por brasileiros, são contadas pelo ponto de vista destes senhores.

Outro dilema notório incide sobre a formação dos elencos envolvidos nestes trabalhos. Das 97 produções brasileiras de ficção, o percentual de negros e pardos que integram o famoso “cast” é de apenas 13,4%. Esse retrospecto só alcança algum tipo de alteração quando o cineasta é negro. Em situações assim, a chance do roteirista também ser negro aumenta em 43,1% e a incidência de um ator ou atriz negro no elenco aumenta em 65,8%. Todavia, apenas três filmes contaram com um negro na cadeira de direção.

Com um escopo temporal bem mais amplo, porém com constatações muito semelhantes, diga-se, o estudo “A cara do cinema nacional: perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012)”, promovido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) reforça que o Brasil visto nas telas do cinema é predominantemente branco.

No tocante à imagem do brasileiro nas telas, a pesquisa protagonizada por Márcia Rangel Cândido e Verônica Toste, sob coordenação de João Feres Júnior e Luiz Augusto Campos, mostram que homens brancos dominaram o elenco principal das 20 maiores bilheterias de cada ano estudado.

Ao todo, eles representam 45% dos papéis mais relevantes. Em seguida vêm mulheres brancas (35%), homens negros (15%) e, por último, mulheres negras (apenas 5%). Nos anos de 2002, 2008 e 2013, nenhum filme analisado foi protagonizado por uma mulher negra. Mesmo maioria da população, os negros aparecem em apenas 31% destes filmes, quase sempre caracterizados a partir de estereótipos asssociados à pobreza ou marginalidade.

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