Quando descobri que eu sou uma uma mulher negra ou Coisas que não estou dizendo

Este não é um texto inspirador. É apenas um desabafo incompleto e superficial de alguém que não sabe se pertence ao lugar onde está.

Posso dizer que o momento em que descobri que sou uma mulher negra foi quando cheguei à cidade de São Paulo, mais especificamente quando se iniciou o ano letivo e eu passei a frequentar o campus da USP. Sim, foi exatamente quando percebi, com o passar dos dias e semestres, que estava me afogando em um mar de gente “lisa”, branca e rica. Veja bem, não estou dizendo que nunca vi pessoas brancas, ou “lisas” ou ricas antes, mas quando você sai de um lugar como a Bahia, que pode ser considerada a “África brasileira”, em que aproximadamente 81% da população da capital é negra e/ou pobre, vem dos mesmos lugares que você e tem uma realidade parecida com a sua, é um tanto assustador estar em um lugar como São Paulo, que apesar de muito diverso é também muito branco (contraditório? Talvez). É assustador estar em um lugar como a USP, no qual, apesar de a política de cotas estar surtindo efeito (ainda que burlada por uns e outros), a “população” de pessoas negras ainda é de apenas 15%.

Não estou dizendo que nunca vi a cor da minha própria pele ou que não sabia que sou uma mulher negra, mas sim que nunca tinha de fato sentido o peso de ter a pele que tenho e de ser quem eu sou.

Agora, quando eu falo sobre o peso de ter a pele que tenho e de ser quem eu sou não é porque o racismo não me afetava na minha terra natal — afetava, embora estivesse além da minha percepção infantil –, mas sim porque aqui, já com uma visão mais adulta e, porque não, mais acadêmica e socialmente consciente, as diferenças sociais entre pessoas negras e brancas me é muito mais perceptível — às vezes até palpável.

Estar na Universidade de São Paulo me fez perceber que eu nunca estive em um posição na qual me sentisse deslocada, descolada ou inferior. Nunca estive em uma posição ou lugar que me fizesse duvidar da minha capacidade, da minha inteligência, das minhas habilidades sociais e da minha importância enquanto ser humano. Nunca estive em uma posição que me fizesse pensar que talvez eu quisesse ter nascido em um lugar diferente ou com uma aparência diferente. Nunca estive em uma posição que me fizesse considerar, com certo afinco, a possibilidade de alisar meu cabelo, mudar o meu comportamento, falar mais baixo e me encolher para caber.

E, apesar de saber a resposta, de ter ciência de que esse pensamento não é meu e muito menos uma coisa real com a qual deveria me preocupar, sigo me questionando se eu devo mudar para me caber nesse mundo.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Afinal, o que aprendemos com o BBB20?

O Big Brother Brasil, em uma edição chamada por...

Afro-Brazilian Actress Taunted by Fellow Brazilians on Facebook After Revealing Her Natural Hair

Afro-Brazilian Actress, Taís Araújo, was hit with a barrage of racist...

Preto não entra

Bernardo Carvalho Muitos anos atrás, quando um amigo francês veio...

“Eu não quero explicações seu preto nojento”, médico sofre racismo de pai de paciente

O médico José Ronaldo da Silva que estava de plantão no...

para lembrar

Literatura afro-brasileira: coletânea reúne 18 histórias sobre os orixás

A editora Malê lançou o livro “Contos de axé:...

Estudantes indígenas ganham residência no campus da Uefs

Local tem capacidade para abrigar 20 alunos.Obra é uma...

Discurso da meritocracia ignora ‘bolha branca’ e discriminação no mercado de trabalho

Trabalhar relações raciais e de gênero em instituições esbarra...
spot_imgspot_img

PM afasta dois militares envolvidos em abordagem de homem negro em SP

A Polícia Militar (PM) afastou os dois policiais envolvidos na ação na zona norte da capital paulista nesta terça-feira (23). A abordagem foi gravada e...

‘Não consigo respirar’: Homem negro morre após ser detido e algemado pela polícia nos EUA

Um homem negro morreu na cidade de Canton, Ohio, nos EUA, quando estava algemado sob custódia da polícia. É possível ouvir Frank Tyson, de...

Denúncia de tentativa de agressão por homem negro resulta em violência policial

Um vídeo que circula nas redes sociais nesta quinta-feira (25) flagrou o momento em que um policial militar espirra um jato de spray de...
-+=