A educação antirracista como força transformadora

Enviado por / FontePor Anielle Franco, do ECOA

Em abril, compartilhei com vocês aqui da coluna minhas preocupações sobre a possibilidade de reabertura das escolas no Rio de Janeiro diante da pandemia. Cinco meses se passaram desde então, e esse debate segue vivo e com novas questões. Algumas escolas já voltaram às aulas, e já vimos também a estruturação do ensino híbrido ou remoto. Passado esse tempo, retomo hoje alguns questionamentos acerca da educação de forma mais abrangente.

A minha percepção como mãe de meninas negras e professora, me coloca em um lugar de questionar o quanto a instituição escolar se afastou da sociedade, a ponto do processo educacional fortalecedor se tornar algo quase insustentável a partir do isolamento social que nos encontramos hoje, e o debate sobre raça no ambiente escolar nos ajuda a evidenciar o que estou falando.

A Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de culturas africanas, afro-brasileiras e de povos originários, é de 2003. Apesar da formação do país começar muito antes disso, foi apenas no início da década passada que foi aprovada uma lei para garantir que conteúdos que dizem respeito a identidade e cultura da maior parte da população brasileira sejam abordados nas escolas públicas.

Citei essa lei, mas poderia escolher outras que foram estabelecidas durante os governos petistas, num momento, em que nós, população negra, tínhamos o mínimo espaço de representação política garantido.

O que se escancara com isso é o afastamento da escola e seus conteúdos programáticos da maior parte da população brasileira, a população negra, a quem ela se destina. Nisso, quando somos surpreendidos por uma crise política e sanitária, os vínculos educacionais e afetivos já superficiais que foram criados se rompem com ainda mais facilidade, e essas quebras passam a atingir, prioritariamente, os grupos minorizados.

Cresci em uma família que sempre valorizou muito o estudo, e faço eco a essa valorização. Mas lembro também de um provérbio africano que diz: “é preciso uma aldeia para se educar uma criança”. E não tenho dúvidas de que não foi apenas a escola, mas também a Maré, meus pais e a Mari que me educaram quando criança. Daí a preocupação com o cenário da educação durante a pandemia. Como foi construída essa aldeia ou quilombo ou comunidade escolar anteriormente? Será que as escolas buscavam valorizar os conhecimentos locais, a diversidade de vivências em jogo ali? Ou será que foi só agora que algumas instituições de ensino descobriram que muitos dos seus alunos não têm sequer acesso estável à internet ou computador em casa?

Imagino que se o currículo e a própria estrutura escolar tem apresentado falhas em sua proposta de acolhimento e se direciona para formar um trabalhador que não se identifica com o que aprende, sendo, consequentemente, impossibilitado de se cuidar, se nutrir, se fortalecer e fazer o mesmo pela sua comunidade, então, com pandemia ou não, vamos continuar vendo notícias de um ENEM cada vez mais branco e o futuro da nossa juventude cada vez mais deixado à mercê de grupos dominantes.

Digo isso porque o problema está posto e agravado com a pandemia. Precisamos de uma educação que proponha estratégias de valorização da vida, das diferentes culturas e de processos de acolhimento. Quero colocar aqui que já vejo, apesar disso tudo, movimentações contra hegemônicas que são absolutamente necessárias.

Cada escola, pré-vestibular social ou universidade que me chama ou chama outras pessoas negras ou de povos originários para falar das suas vivências, estudos e trajetórias já estão dando um passo na luta por um ambiente educacional mais humano. Isso, claro, fora das “datas comemorativas”. Precisamos apresentar essas referências para população negra a todo tempo, não apenas em abril ou em novembro negros. Quando organizamos a História em Quadrinhos de Marielle, estávamos com isso em mente também: Criar um material que, além de ser uma leitura convidativa, pudesse ser usado em salas de aula de sociologia, filosofia, história e geografia.

Por aqui, seguimos construindo formas de nos aquilombar, aquilombando pois sabemos que essa é uma forma de educar e cuidar que resiste aos momentos históricos mais tortuosos.

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