Cia. Os Crespos discute racismo e homofobia em filme-espetáculo “Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol”

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Com pré-estreias para outubro, o curta é livremente inspirado na vida dos boxeadores Emile Griffith e Benny Kid Paret e reflete sobre as lutas, os fantasmas e os sonhos de homens negros na américa.

“Eu mato um homem e a maioria das pessoas me perdoa. Entretanto, eu amo um homem e muitos dizem que isso faz de mim uma pessoa ruim” – Emile Griffith

Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol”, tem como fio condutor a disputa pelo título mundial de boxe de 1962, entre os afro caribenhos Benny Kid Paret – encenado pelo ator Rodrigo de Odé – e Emile Griffith, primeiro campeão mundial de boxe a assumir sua bissexualidade – interpretado pelo ator Sidney Santiago Kuanza.

No dia anterior à luta, durante a pesagem, o cubano Kid Paret havia proferido várias ofensas em relação à orientação sexual de Griffith, que subiu no ringue transtornado e desferiu uma sequência de golpes em Paret, levando-o ao coma. Paret veio a falecer 10 dias depois e o fato trágico assombrou o campeão até o fim dos seus dias.

A obra é baseada na peça “12º Round” do dramaturgo Sérgio Roveri, e faz uma série de pré estreias em outubro, com exibições onlines e gratuitas. A primeira delas acontece no dia 04 de outubro, às 19h30, na 3ª Mostra de Cinema Negro “Faz Lá o Café”(link aqui). Realizada pelos Crespos em parceria com o Grupo Clariô de Teatro, a mostra também apresentará filmes premiados como: “Café com Canela”, “Amor Maldito” e “Peripatético

SOBRE O FILME ESPETÁCULO “DOIS GAROTOS QUE SE AFASTARAM DEMAIS DO SOL”

Desde 2018, Roveri  já aguardava pela montagem de seu texto inédito, quando a Cia Os Crespos propôs encená-lo. A dramaturgia dele, presta uma homenagem ao tricampeão de boxe Emile Griffith, contando sua trajetória desde a fatídica luta com Paret até o final de seus dias, quando, depois de décadas atormentado pelo fantasma de Kid, Emile é reconhecido como um dos ícones da luta gay, tendo enfrentado diversas situações homofóbicas dentro e fora do esporte.  

A diretora geral do trabalho, Lucelia Sergio, conta: “O texto do Sérgio nos propunha um jogo cênico interessante, a partir das regras de tempo de uma luta de boxe e, além de trazer à tona essa história, sua abordagem na construção das personagens é muito sensível.” 

A ação do filme se passa no recorte temporal entre a preparação de Griffith e Paret para a luta, até os dias seguintes à morte de Kid Paret, quando Emile começa a ser atormentado pelo fantasma de Kid.  O curta, que não tem caráter biográfico, vai além da homenagem a Griffith. Na adaptação para o audiovisual, o roteiro buscou ler a luta hiperdramática preocupada em ressaltar questões enraizadas em uma sociedade racista, machista e homofóbica. “Um filme para falar sobre os fantasmas que surgem nas cabeças torturadas pelas lutas diárias de auto-defesa, numa sociedade cheia de mecanismos escravocratas, cujo controle dos corpos, fiscaliza nossos afetos e molda nossos afetamentos”, completou Lucelia Sergio.

Meu corpo todo tá maltratado. É pelos golpes do boxe na cabeça, sim, mas é muito mais pelos golpes do sol, o sol da lavoura da cana…Eu já havia trocado o facão pelo ringue e mesmo assim, ainda acordava assustado com a lembrança daquele facão na minha mão.” O trecho  do curta “Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol, dito pela personagem de Kid Paret, nos provoca a refletir sobre as dores de homens negros em luta por dignidade, mas que são completamente afetados pelos códigos de uma sociedade que os enraivece, embrutece e amedronta. Longe da glória dos holofotes e da vida pública, Kid Paret era um garoto analfabeto que fugira da escravidão da cana na Cuba pré-revolucionária e, ambicionava comprar um açougue em Miami, onde poderia viver o sonho americano com sua mulher grávida e seu filho pequeno.

O filme surge no contexto da pandemia, como saída para a montagem do espetáculo teatral, cujos ensaios foram suspensos em março de 2020. No curta, a companhia tenta conciliar recursos teatrais com enquadramentos cinematográficos. O ringue se torna o palco e nele as relações entre as personagens acontecem. Dividido em rounds e intervalos, como propõe o texto original, a adaptação é ambientada na sociedade estadunidense, que se via em meio à luta por direitos civis de pessoas negras e gays, e ao mesmo tempo espetacularizava as lutas de boxe, nas quais os lutadores eram em sua maioria negros, e/ou latinos.

A direção do filme – compartilhada entre Lucelia Sergio e Cibele Appes, da Fuzuê Filmes – buscou, no entrecruzamento das linguagens, manter características teatrais na iluminação, parte dos cenários, e nos monólogos dramáticos com digressões, além de algumas soluções cênicas. Por outro lado, houve o esforço de reconstituir as cenas reais da pesagem, quando Kid ofendeu Emile e a fatídica luta, entendendo os recursos cinematográficos de enquadramentos e sobreposições de imagens.

Sobre os desafios de transpor uma pesquisa teatral para o cinema, Lucelia fala sobre os desafios. “Como levar para a tela um monólogo de três minutos, baseado na relação entre atuantes e plateia? Era preciso um esforço para unir  a potência discursiva do teatro narrativo com a subjetividade que o cinema propõe. Como as personagens são perturbadas por lembranças, os recursos cinematográficos de montagem para a memória visual foram fortes aliados e ajudaram a chegar na velocidade pretendida, dialogando com outros filmes de boxe, que serviram de referência para a obra”, contou.

O boxe coreográfico, apresentado por Carolina Nóbrega, foi integrado à montagem e além de reconstituir as sequências de golpes da luta de 62, também tornou-se discurso estético no filme. Dialogando com as regras da luta, os golpes e defesas serviram de recurso poético para a performance dos atores em cena. Escolha que contribuiu para a construção das ações, propondo um espelho com a vida cotidiana de pessoas negras na América, constantemente em luta. 

Em março de 2020, o espetáculo já estava quase pronto quando o mundo foi assolado pela pandemia da Covid-19. Após várias adaptações necessárias para cumprir os protocolos sanitários, a Cia ainda teve que lidar com a perda de João Acaiabe, mais uma das vítimas da doença. João, que acabara de completar 50 anos de carreira, faria a personagem de Emile como narrador da história. “Com a morte do João o roteiro mudou completamente”, revela Lucelia Sergio, “Já intuíamos sobre o que falar, mas com a partida dele tivemos que manobrar a história, sem tempo de viver o nosso luto”.

Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol” é fruto do projeto de “Mãos Dadas: Afetos Políticos, Contornos Poéticos” contemplado pela 35ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. O projeto proporcionou o aprofundamento da pesquisa de linguagem, que investigou sobre masculinidades negras e as possíveis intersecções com as lutas de auto defesa. Neste percurso Os Crespos foram provocados a pensar a humanidade negra a partir da filosofia Bacongo, apresentada pela Professora Aza Njeri, Pós-doutora em Filosofia Africana UFRJ, “todo ser humano é um sol vivo… as populações negras sofrem um constante apagamento do seu sol, através de fenômenos de poder de desumanização dos nossos corpos… uma família, independente da sua constituição é uma constelação solar, subindo a montanha da vida.” Essa ideia iluminou uma das frases do texto de Roveri, que virou o título do filme-espetáculo. A frase que dá nome a obra resume a ideia de que as pessoas negras tem sua dignidade como ser humano desafiada, até que elas fracassem, até que seu sol seja apagado.

O curta-metragem entra em circuito de exibições de pré estreias por alguns equipamentos públicos durante os meses de outubro e novembro.

Confira a programação abaixo.

DOIS GAROTOS QUE SE AFASTARAM DEMAIS DO SOL” – Pré Estreias

Outubro

04/10 – Segunda-feira, às 19h30 – pela 3ª Mostra de Cinema Negro “Faz Lá o Café –  única sessão www.youtube.com.br/CiaOsCrespos (acesse aqui o material completo da mostra – 3ª Mostra Faz Lá o Café)

08, 09 e 10/10 – Sex e sáb, 21h, dom, 19h – Facebook/Youtube do  Teatro João Caetano

15, 16 e 17/10 – Sex e sáb, 21h, dom, 19h – Facebook/Youtube do Teatro Arthur Azevedo (Debate com direção e elenco no domingo, 17/10, após exibição do curta)

16/10 – Sáb, 18h45 – pela Mostra “Quando o Palco Se Fez Cinema” no Youtube do CCSP

Novembro

05, 06 e 07/11 – Sex e sáb, 21h, dom, 19h – Facebook/Youtube do Teatro Alfredo Mesquita

12, 13 e 14/11 – Sex e sáb, 21h, dom, 19h – Facebook/Youtube do Teatro Cacilda Becker (Debate com direção e elenco no domingo, 14/11, após exibição do curta)

Sinopse

Emile e Kid são dois garotos afro-caribenhos que vão para os Estados Unidos tentar melhorar suas condições de vida. Lá eles se tornam campeões mundiais de boxe e, de alguma forma, são incorporados à sociedade estadunidense. 

No frio do Norte eles fazem parte do mundo do sucesso e vivem sob códigos que não controlam. Em um ringue aterrorizante, os campeões lutam contra seus próprios fantasmas, criando dispositivos de autodefesa que os aprisionam ainda mais. E numa luta sangrenta, eles vão usar seus punhos para conquistar o sonho de liberdade, mas a vitória de um depende do fracasso do outro.

Ficha Técnica 

DOIS GAROTOS QUE SE AFASTARAM DEMAIS DO SOL

Um filme-espetáculo para Emile Griffth (1938 – 2013) e Benny Kid Paret (1937 – 1962)

Direção: Lucelia Sergio e Cibele Appes

Com: Sidney Santiago Kuanza, Rodrigo de Odé, Teka Romualdo, Mônica Augusto e Eduardo Silva

A partir do texto dramatúrgico “12º Round” de Sérgio Roveri

Roteiro: Lucelia Sergio

Direção de Produção: Rafael Ferro

Produção: Rafael Ferro e Ramon Zago

Assistência de Produção: Niara Ngozi

Assistência de Direção: Ramon Zago e Cibele Appes

Som direto: Edu Luz

Direção de fotografia: Cibele Appes e Lucas Kakuda

Operação de câmera:  Lucas Kakuda, Isabel Praxedes e Cibele Appes

Lighting Designer: Denilson Marques

Técnicos de Luz: Lucas Barbosa e Rafael Casimiro

Direção de Arte e figurino: Gui Funari e Lia Damasceno

Assistente de Figurino: Andy Lopes

Maquiagem: Tairone Porto, Jhonny Bodonni

Escultura: “Patrimônio=Nóis” (Busto ao Desconhecido/Getúlio sumiu), obra de Érica Ferrari

Preparação de elenco: Lucelia Sergio

Preparação corporal e coreografia de luta: Carolina Nóbrega

Elenco de apoio:  Conrado Caputo, Celso Cardoso, James Turpin, Thiago Catarino, Fernando Bolacha, Tairone Porto, Myria Rios Kuanza, Lucelia Sergio, Ramon Zago e Rafael ferro – Crianças: Akins Samuel, Tayrone Barbosa, Kenay Barbosa

Montagem: Cibele Appes

Trilha e Direção Musical: Dani Nega

Desenho de som: Cibele Appes e Dani Nega

Mixagem: Ruben Vals

Músicos: Bira Junior, Natalia Mallo, Gisah Silva

Assistência de montagem – Mel Appes e Edu Luz

Finalização de cor: Lucas Kakuda

Finalização de som e logger: Edu Luz

Orientação teórica: Osmundo Pinho e Jonathan Raymundo

Identidade visual: Rodrigo Kenan

Fotografia still e making of: Mariana Ser e Isabel Praxedes

Contrarregragem: Fred Peixoto e Carlos Farah

Catering: Belo Bocado – Cozinha Vegana, Myria Rios Kuanza, Menina Brasileira

Legendagem e acessibilidade: ETC Filmes 

Direção geral: Lucelia Sergio

Produtora audiovisual: Fuzuê Filmes

Realização e Produção executiva: Cia os Crespos


SOBRE A CIA OS CRESPOS

Os Crespos é um coletivo teatral de pesquisa cênica e audiovisual, debates e intervenções públicas, composto por atores e atrizes negros e negras. Formou-se na Escola de Arte Dramática EAD/ECA/USP e está em atividade desde 2005. A Cia. trabalha, há dezesseis anos, a construção de um discurso poético que debata a sociabilidade do indivíduo negro na sociedade contemporânea, seus desdobramentos históricos e a construção de sua identidade, aliado a um projeto de formação de público e aperfeiçoamento estético.

A Cia circulou com espetáculos, intervenções e palestras por diversas cidades e estados do país, além de apresentações na Alemanha e Espanha. Tem em seu repertorio 7 espetáculos teatrais, 11 intervenções urbanas; a elaboração e publicação da revista de teatro negro Legítima Defesa, que vai para seu quarto número; a Mostra Cinematográfica Faz lá o Café em parceria com o Grupo Clariô de Teatro, os curtas D.O.RNego Tudo e Imagem Autoimagem; e desde 2018, a Cia promove as “Segundas Crespas”, encontros entre artistas para discutir arte negra e è uma das organizadoras do Fórum de Performance Negra de São Paulo.

Entre os principais trabalhos, estão: Anjo Negro + A Missão (2006) dirigida pelo alemão Frank Castorf, diretor do Teatro Volksbühne; Ensaio Sobre Carolina texto e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo (2007); a trilogia Dos Desmanches Aos Sonhos (2011-2013), que investiga o impacto da escravidão na forma de amar dos brasileiros e é composta pelos espetáculos Além do Ponto com direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, Engravidei, Pari cavalos e Aprendi a Voar sem Asas e Cartas à Madame Satã ou me Desespero Sem Notícias Suas, ambos com direção de Lucelia Sergio. Os Coloridos (2015) texto de Cidinha da Silva e direção de Lucelia Sergio; Alguma Coisa a Ver Com Uma Missão (2016) que tem dramaturgia de Allan da Rosa.

Em 2019 a Cia realiza as Terças Crespas no Centro Cultural São Paulo, com a qual concorre ao Prêmio Aplauso Brasil 2019, na categoria Destaque. E em 2021 estreia seu novo filme Dois Garotos que se Afastaram Demais do Sol, e um espetáculo infantil denominado De Mãos Dadas Com Minha irmã, além da publicação do terceiro e quarto números da revista Legítima Defesa.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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