“Ah. . . mas o meu cabelo não é assim!”

 Pra começar, compartilho com vocês a reflexão abaixo, exposta pela Kelsey Janae. Olhem:

“Antes de retornar ao natural nunca tinha ouvido falar da classificação dos tipos de cabelo. Todo mundo que eu conhecia usava alisantes e nossos cabelos se comportavam praticamente do mesmo jeito: quando molhados, eram fios rígidos e retos na extensão e inchados na raiz, indicando a hora de um novo relaxante. Quando decidi ser natural, vi uma lista sobre os diferentes tipos de cabelo num site. Começava com o 2A (totalmente liso) e ia até o 4C (muito crespo). Também foram listados diferentes tipos de produtos para o cuidado de cada tipo de cabelo. No início da minha jornada a lista dos tipos de cabelo parecia bastante útil no que diz respeito ao desenvolvimento de meu próprio “regime de cuidados” e, depois que observei isto, não refleti novamente. Em seguida, comecei a perceber que eu tinha três tipos de cabelo diferentes. Além disso, aprendi que não é só porque alguém com um tipo semelhante ao meu usa determinado produto que o mesmo irá ter efeito igual em mim. Conforme o tempo passava, notei uma divisão subjacente entre “as naturais” em relação aos diferentes tipos de cabelo. Tenho observado que as que não são naturais, mas desejam ser, muitas vezes hesitam em fazê-lo por causa do medo de ter um tipo de cabelo “menos desejado”. Eu acho que partir para o natural é abraçar quem você é e amar sua textura. Parece que ainda existem certos padrões de beleza, mesmo dentro da “comunidade de cabelo natural”, que estão ligados aos tipos de cabelo.”

Traduzindo livremente: "Discriminação de texturas? 10.375 liks e 3.101 compartilhamentos vs. 3.796 likes e 295 compartilhamentos. Ambos são sobre twist out de três mechas."
Traduzindo livremente: “Discriminação de texturas? 10.375 liks e 3.101 compartilhamentos vs. 3.796 likes e 295 compartilhamentos. Ambos são sobre twist out de três mechas.” (Foto: Imagem retirada do site Meninas Black Power)

Quem nos acompanha sabe que sempre privilegiamos todas as texturas, exatamente pra que todas se encontrem. Enquanto compartilhamos tantas inspirações, é visível a existência de um “cabelo ideal”. Minha preocupação com este padrão, mesmo após permitirmos nossos cabelos, veio ao perceber que cabelos do tipo “cachos perfeitos” são os mais cobiçados e há gente fazendo de tudo pra chegar neles. Também há gente ensinando como caçá-los loucamente. Parece que quanto mais fake o cacho, mas desejado ele se torna. É bizarra a frequência de declarações do tipo “eu queria tanto meu cabelo assim!”, “o cabelo dela é tão incrível!”, “eu nunca vou ter esse cabelo…” e etc. Todos sempre muito cheios de lamento, sabem? Como se ter um fio mais crespo fosse a maldição do século. Não é uma simples admiração.

Repartimos sempre em Coletivo estas observações. Todas nós notamos como é comum encontrar um “preciso de um cabelo desses” sendo dito por aí. Às vezes ele é dito até por quem já passou pela transição, mas ainda pensa em alcançar a “perfeição”. Ressalto que a questão aqui não é liberdade de escolha, mas a constante busca por ser “melhor” do que se é. Uma das razões para a existência do Meninas Black Power é gerar o olhar cuidadoso sobre nós mesmas. Não aprendemos isso naturalmente por conta de todo desprivilégio que impera. Ora, se quem nos lê diariamente continua inferiorizando sua própria imagem, querendo trocar por outra, não cumprimos nossa missão! Nos esforçamos para falar aos mais de 40.000 cérebros que não adianta muito cultivar o cabelo, passar pelo Big Chop ou todos os outros processos de transição, e depois olhar fotos numa página qualquer e querer ser aquilo que está na tela, se inspirar exclusivamente num espelho que não lhes reflete. É preciso haver uma transição de mentalidade enquanto o cabelo muda.

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(Foto: Imagem retirada do site Meninas Black Power)

Pensem bem: será que esses cachos tão queridos dos editoriais de moda não passaram por nenhuma adaptação? Será que as atrizes não passam um tempão sentadas em cadeiras de algum super hair stylist fazendo babyliss fio por fio?Estamos falando do esforço midiático em influenciar pessoas, da ideia de que só assim seremos aceitas. Além disso, o que faz com que aqueles cabelos tipo 3 (com cachos super abertos), com bastante definição e volume, sejam mais belos que um 4C? Será que um 4C não tem beleza e vantagens? Eu mesma respondo: está tudo errado. Há beleza em todo lugar. Está na hora de sermos mulheres diferentes, que admiram a beleza da outra, mas compreendem o valor da beleza que está no próprio corpo.

Fico feliz quando perguntam como é meu cronograma ou as receitas que gosto de fazer, mas tudo acaba no momento do “meu cabelo nunca vai ser bonito como o seu”. Depois de algum tempo sendo “conselheira crespa” por aí, entendo que a insegurança na transição, por exemplo, é normal. Passar pela transição é um processo de desconstruir padrões e se reaprender. É preciso crescer com esta experiência e se libertar das imposições. Não estamos aqui por moda, não estamos buscando o título de “a mais style do baile”, não queremos ter o cabelo mais bonito pra oprimir nossas iguais. O ponto principal é identidade. Ela se manifestará na resistência e posicionamento diante de um mundo racista, que pensa que precisamos obedecer regras para sobreviver. Por isso, se vocês que estão lendo acreditam que um “cabelo black” é apenas estilo, sugiro que revejam o conceito. Faço também a pergunta que a Juliana Barauna deixou: o que vocês vão fazer com o black quando a moda acabar?  

Somos todas rainhas. Todas nós estamos sendo refeitas, nos levantando dos processos que nos quebraram por anos, curando o coração enquanto cicatrizamos as feridas de nosso couro cabeludo. Toda essa mudança dá trabalho, às vezes é dolorosa, mas é vital para abrir os olhos e a mente. Para entender de vez que o mais importante não é nosso tipo de cabelo, mas o quanto de amor temos por ele. Vamos ostentar cada cabelo como coroas na prática! Vocês sabem: existem coroas diferentes, mas todas sempre preciosas. Desejo para nós este mesmo brilho e liberdade.

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