O racismo derrotado

A eliminação do Grêmio da Copa do Brasil é um remédio amargo, porém necessário, para as manifestações de racismo que fazem dos estádios uma extensão do que existe de mais podre e repulsivo na sociedade. Na última quarta-feira, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) excluiu o time de Porto Alegre da Série A da Copa do Brasil, como punição pelas ofensas de torcedores contra o goleiro Aranha, do Santos, em partida no dia 28 de agosto. A defesa gremista alegou que o clube realiza campanhas institucionais contra o preconceito e colaborou com a identificação dos torcedores que hostilizaram o goleiro, mas não adiantou.

O meio esportivo recebeu a medida com a esperança de que ela seja um divisor de águas no comportamento das torcidas. Além de excluir o Grêmio e multá-lo em R$ 54 mil, o tribunal aplicou suspensões e multas ao árbitro Wilton Pereira e aos dois auxiliares. O árbitro, que é negro, alegou não ter ouvido os insultos a Aranha, apesar da reclamação enfática do goleiro. Os torcedores identificados pelas imagens de TV quando proferiam xingamentos serão impedidos de entrar em estádios pelos próximos dois anos. Eles também poderão ser indiciados em processo criminal por injúria qualificada, cuja pena pode ir de um a três anos de reclusão.

É curioso que um esporte praticado por tantos negros – e que tem no negro Pelé a eterna expressão de sua majestade – se preste à veiculação do preconceito racial, em sua forma mais escancarada. O assunto foi capturado de forma magistral pelo contista João Antônio, falecido em 1996, no conto Juiz, publicado na década de 1980. Escalado para apitar um Londrina x Coritiba, o árbitro Jacarandá perde o controle da partida e é martirizado por “um povo que não lhe perdoa a cor”. “Voltou a campo e teve, em quarenta e cinco minutos, que ouvir cerca de duzentas vezes o mesmo xingo. O negro gritado com nojo e escárnio, acompanhado de vários complementos – safado, ladrão, cascateiro.”

Ofensas lançadas em coro contra juízes e adversários são uma tradição das torcidas e estão de tal maneira assimiladas que os próprios agredidos acabam por aceitá-las como parte do jogo. Nas raríssimas ocasiões em que alguém, clamando por sua dignidade, rebela-se contra essas formas de assédio, não falta quem defenda a inexistência de preconceito. A direção do Grêmio classificou como exagerada a sentença do STJD, contra a qual vai recorrer. “Eu não sou racist””, afirmou, entre lágrimas, a torcedora Patrícia Moreira, flagrada por uma câmera ao xingar o goleiro Aranha. “Aquela palavra, macaco, não foi racismo de minha parte. Foi no calor do jogo. O Grêmio estava perdendo…” – tentou justificar.

O fato é que as atitudes racistas, seja no futebol ou em outros setores, tendem a ser minimizadas pelos que as praticam. Quando flagrados, os agressores pedem desculpas, alegam que têm amigos negros e que não tiveram a intenção de ofender – e logo são esquecidos, com a certeza de que, na pior das hipóteses, precisarão fornecer algumas cestas básicas ou prestar serviços comunitários para quitar sua pendência com a Justiça. A impunidade é o motor do racismo e de outros crimes, que poderiam ser extirpados com duas ferramentas poderosas e mal utilizadas: a educação e a lei.

Típica de um ambiente social tolerante ao preconceito, a reação do Grêmio poderia ser mais digna. “Se esta condenação servir para acabar com o racismo no Brasil, será fantástico. Mas não creio que isso vá ocorrer”, afirmou o presidente do clube, Fábio Koff. A punição determinada pelo STJD é, no entanto, exemplar e será uma pena se for revertida. Clubes e torcidas organizadas mantêm uma relação orgânica. Por isso, no mundo todo, os times pagam pelos erros de suas torcidas. A eliminação do Grêmio certamente não acabará com o racismo no Brasil. Mas é um passo importante para que a dignidade humana seja respeitada, dentro e fora dos estádios.

 

Fonte: Cruzeiro do Sul

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