Escolher o vivido

Quando se conheceram, ela tinha treze, ele dezesseis anos. Foi na metade da década de 1940, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Ela gostava de olhar os bondes passando em frente a sua casa, na Rua Barão de Mesquita, 136. A distância entre o bonde e a janela certamente era mínima, pois ela o viu equilibrando-se no estribo. Ele estava todo garboso no seu uniforme de aluno do Colégio Militar.

Por Fernanda Pompeu no Yahoo

Ele também a viu. Se escolheram ali para um vida toda e inteira. Foi simbiose de corpo e de alma. Às vezes, ele gostava de falar para ela que seria uma boa ideia os dois morrerem juntos: “Numa explosão de avião, quem sabe?” Ela detestava a brincadeira, mas compreendia que no fundo ele dizia que a queria ao seu lado até na eternidade.

Numa noite de domingo, ele se foi. Sem ela. Aconteceu não na explosão de um avião, ou de um foguete. Ele morreu na cama de um hospital, aos 83 anos. Ela passou a regar o jardim do luto, com esmero extremo. Rodeada de fotos dele por toda a casa. Tentando jamais esquecê-lo por um segundo que fosse.

Ontem de manhã, perguntei para minha mãe por que ela só olha as fotos do meu pai jovem. Ele no colégio militar, no primeiro emprego, no auditório do sindicato, no aniversário de dez anos de casados. Ela respondeu bate-pronto: “Eu não me recordo dele velho”. Desconfio que memória dela se recusa a lembrar da doença, do sofrimento, do velório, da cerimônia de cremação.

Percebo que ela decidiu lembrar do melhor dos dois, do mel da vida. Em outras palavras, recordar-se da saúde, dos sexos, dos sonhos. E da juventude deles, por suposto. Apesar da cena ter ocorrido ontem, reflito que afinal a gente escolhe o que lembrar do passado. Como se o tempo fosse uma mesa de comida por quilo, onde selecionamos os alimentos.

Na hora de escrever, desenhar, ou compartilhar nas redes sociais fazemos exatamente igual. Escolhemos, selecionamos, pinçamos fragmentos da realidade. Bobagem acreditar que a realidade é um todo. Ou crer que ela mora no presente, se veste de concreto, se abraça ao cotidiano.

O passado, como os mortos, não é uma ex-realidade. Muito menos matéria intangível. Ao contrário, o passado está na palma da mão. Ele faísca quando fechamos os olhos, ou viramos o rosto. Para minha mãe, meu pai vive no gesto de tocar na fotografia. Coisas de gente velha? Não, coisas de humanos.

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