Relações que matam

Na última década, morreram 398 mulheres vítimas de agressões em contexto de violência doméstica em Portugal. Ciúme e dificuldade em aceitar a separação são os principais motivos. O ano de 2014 ficou marcado pela morte de 42 mulheres.

Por  no Público.pt

Fernanda e Inês morreram esfaqueadas à porta de casa, em Soure, Coimbra, num quadro de violência doméstica, minutos depois de terem ido caminhar pela vizinhança. A mãe de 47 e a filha de 16 anos gritaram por ajuda através da porta trancada pelo agressor, marido e pai. Os vizinhos alertaram as autoridades e a GNR arrombou a porta quando chegou, mas já não foi possível salvá-las.

O cenário violento surpreendeu bombeiros e polícias que as encontraram deitadas à entrada do apartamento. Tinham vários golpes no peito, no abdómen e nos braços, um tipo de ferimento que indicia que se tentaram defender. Morreram numa madrugada de Outubro. O agressor esperou a polícia deitado na cama de casal depois de agredir outra filha de 13 anos que sobreviveu.

Os números e as listas de vítimas mortais, que pontuam relatórios da última década, soam aos resultados finais de um conflito armado marcado com os nomes das mulheres que sucumbiram a relações que matam. Na última década, morreram 398 mulheres vítimas de agressões em contexto de violência doméstica em Portugal, segundo o último relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas da União Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).

Só até ao final de Novembro de 2014 morreram 40 mulheres, de acordo com o estudo da UMAR que serve de fonte à infografia publicada com este artigo. Mas posteriormente, já em Dezembro, registaram-se mais duas mortes de mulheres, fazendo subir para 42 o número de vítimas. Um balanço ligeiramente superior ao registado em 2013, ano em que morreram 37 mulheres. Na evolução da última década destaca-se o ano de 2008, quando o número de mortes subiu para 46. Porém, a média por ano manteve-se.

“A conclusão é que não obstante o seu maior reconhecimento e maior visibilidade [do fenómeno], não fomos ainda capazes de diminuir as taxas de prevalência da forma mais letal de violência contra as mulheres nas relações de intimidade”, aponta o observatório.

Quatro vítimas por mês
Em média, morreram quatro mulheres por mês no ano passado. Em mais de metade dos casos (52%), o agressor foi o marido, o companheiro ou o namorado da vítima, enquanto em 30% das situações a mulher foi vítima de agressões fatais já depois da separação.

O caso de violência doméstica mais mediática do ano passado é o melhor retrato desta situação. Manuel Baltazar, agricultor de Valongo dos Azeites, São João da Pesqueira, conhecido pela alcunha de “Palito”, passou a perseguir a ex-mulher quase todos os dias nos últimos cinco anos, após esta ter decidido separar-se dele face a um quadro de violência doméstica. “Palito”, de 61 anos, aguarda julgamento em prisão preventiva acusado pela morte, a tiro, da ex-sogra e da tia. Feriu ainda a filha e a ex-mulher a 17 de Abril, quando todas estavam reunidas a preparar doces para a Páscoa. A pulseira electrónica, através da qual Manuel Baltazar era vigiado no âmbito de um processo judicial que o submeteu a uma medida de afastamento da ex-mulher, de nada adiantou. Disparou a caçadeira e fugiu.

A arma de fogo foi, contudo, o segundo meio mais usado (32%) em quadros conjugais fatais em 2014. Os agressores preferiram, em primeiro lugar, o uso de armas brancas (37%). Nos casos restantes, os homicidas escolheram o afogamento, a asfixia, o estrangulamento, o espancamento e o fogo, segundo o estudo da UMAR.

Manuel Baltazar esteve 34 dias em fuga, o que o tornou o suspeito mais procurado de então. Valongo dos Azeites parecia uma aldeia em estado de sítio com um constante cerco militar. “Palito” foi procurado pelos montes por mais de 200 guardas da GNR – alguns a cavalo – e inspectores da Polícia Judiciária.

A partir de Fevereiro de 2009, altura em que o casal se separou, o alegado homicida passou a levantar-se de madrugada para ver onde a ex-mulher andava e para exercer coacção sobre ela, de acordo com o processo relativo aos episódios de violência doméstica. O relatório social apenso ao processo descreve-o como pouco sociável e aponta-lhe uma obsessão em relação à ex-mulher, com quem esteve casado 25 anos. “Um e outro jurámos ser fiéis até que a morte nos separasse. Não sei por que ela quis o divórcio. Está deprimida e inventa coisas”, referiu o agricultor durante uma das inquirições em tribunal antes do crime.

Ciúme e separação
De facto, os ciúmes (20%) e a circunstância de o agressor não aceitar a separação (10%) são os principais motivos apontados pelo observatório que analisou com detalhe os casos que foram notícia em 2014.

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