Júnia Puglia: Ruth e Zilda

As irmãs Ruth e Zilda moravam bem perto da minha casa. Ruth era uma linda mocinha de uns quinze anos, alta, de olhos verdes e pele cor de canela. Esbanjava alegria e energia, um furacão de voz grave e gargalhadas demolidoras. A irmã devia andar pelos dez anos, era bem negra, com trancinhas e uma luz intensa nos olhos.

A mãe delas começou a frequentar a nossa igreja, e Ruth algumas vezes ficava cuidando de nós, filhos do pastor, enquanto meus pais iam a algum culto durante a semana. Era muito bom ter uma babá linda e divertida, que ignorava todas as instruções da minha mãe e inventava as brincadeiras mais loucas. De vez em quando, fazia uns fantásticos mexidos de sobras de comida quando já estávamos dormindo, e nos acordava pra comer com ela.

Além de serem alegres e carinhosas com a gente, chamava-me muito a atenção que elas não tinham a expressão derrotada ou ressentida de todos os outros negros da minha infância. Eram altivas e tinham uma evidente alegria de viver. E isto era insuportável pra quase todo mundo. Lembro-me do incômodo que causavam entre os adultos, por serem “atrevidas”, e “não entenderem o seu lugar”. Além disso, a beleza e sensualidade de Ruth eram ameaças constantes às famílias.

Durante um bom tempo, minha grande transgressão de criança consistiu em fingir que ia brincar na rua, em frente de casa, que era a distância permitida, e fugir para a casa delas, onde rolava pipoca com limonada e muitas risadas. Fui pega no pulo, e terminantemente proibida de voltar lá. Tudo bem que Ruth fosse nossa babá eventual, mas eu “fugir” pra ir brincar com elas por iniciativa própria era um absurdo.

Pouco tempo depois, elas se mudaram da nossa cidade. Da Zilda, nunca mais ouvimos falar. Quanto à Ruth, soubemos, muitos anos depois, que estava casada com um alemão e morava em São Paulo. A notícia veio acompanhada de comentários do tipo “quem diria que aquela negrinha ia agarrar um alemão, e ainda se casar com ele”.

Contavam-se detalhes sobre os terríveis conflitos familiares – que ninguém ali havia presenciado – causados pela escolha do rapaz, que, ao que consta, apaixonou-se por ela e enfrentou a ira da família com muita coragem e determinação.

Se a vida não é fácil pra ninguém, como eu acredito, ela sempre proporcionou doses multiplicadas de dificuldades para os negros, dificuldades tanto maiores quanto mais “atrevidos” e menos conformados eles forem com seu destino “automático” de “seres humanos de segunda classe”. Isso está mudando, sim, mas ainda falta muito.

Nunca soube como Ruth se sentiu ao enfrentar a situação do casamento, mas tenho certeza de que, por mais difícil que tenha sido, sua bendita altivez garantiu-lhe um lugar num mundo que lhe era totalmente adverso. Deste momento tão distante, mando-lhe um beijo saudoso e cúmplice.

 

 

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