Medo vira pretexto para destituir a liberdade e criminalizar pobres

Para advogado, “a violência do Estado é necessária para a produção da obediência das classes mais baixas”. Movimentos responsabilizam forças policiais pela violência contra a população, principalmente de baixa renda e negra

 

(8’11” / 1.87 Mb) – A onda de violência no Estado de São Paulo põe em questão o papel e a função das forças de segurança pública existentes no país. Para o advogado que atua na área de direitos humanos Renato Roseno, é preciso indagar se houve mudança no papel do Estado e da Polícia Militar (a que mais mata no mundo) nos últimos anos, ou se esse é o caráter histórico dessas instituições. Os movimentos sociais responsabilizam as forças policiais pela violência contra a população, principalmente de baixa renda e negra.

“O Estado precisa educar e coagir a sociedade, e um dos dispositivos para fazer isso são as instituições de segurança pública. A violência do Estado é necessária para a produção da obediência das classes mais baixas”, avalia Roseno.

Em entrevista à Radioagência NP, após participação no debate “Desmilitarização da polícia e da política”, ocorrido na última segunda-feira (3) na PUC-SP, Roseno afirmou que “o medo vira pretexto para destituir a liberdade e criminalizar pobres”.

Radioagência NP: Como a violência está relacionada com o projeto de Estado brasileiro?

Renato Roseno: O projeto está assentado na produção de exploração da opressão. Ele gera contradições sociais, que devem ser administradas por coesão ou por coerção das classes pobres, consideradas “perigosas”. O conflito social é tratado como desvio, como perigo. Então, o perigoso tem que ser estigmatizado, disciplinado, corrigido e punido.

Não é à toa que o direito penal é da idade do capitalismo. O projeto de gestão do conflito social, por via do dispositivo penal, nasce quando o Estado capitalista ganha racionalidade e solidez. O Estado tem que ser o monopólio da força para dar ordem, portanto, o que está fora da ordem, por algum motivo, tem que ser administrado.

Primeiro você “retribui a sociedade, vingando a sociedade”. Por isso que a justiça é retributiva. Segundo você dá o exemplo e, por último, você “ressocializa”. Mas na verdade você não ressocializa ninguém pelo dispositivo penal. Você apenas seleciona e estigmatiza.

Radioagência NP: Como a mídia influi nesse projeto?

RS: Ela produz legitimidade sobre quem é o perigoso, quem é o suspeito e quais são os mecanismos que devem ser dirigidos a ele. Por outro lado, ela produz e reproduz medo. O medo é uma ideia política fundamental. Como a classe trabalhadora está com medo, não produz rupturas. O medo é o pretexto para destituir a liberdade.

Na lei geral da Copa, por exemplo, em nome do combate ao terror, se aprova o recrudescimento penal contra os pobres. A mídia, portanto, produz o estigma, legitima o dispositivo penal, e também produz pânico social.

Radioagência NP: E a seletividade do encarceramento também está incluída?

RS: O encarceramento é o resultado do dispositivo penal. A criminalização sempre será seletiva. Os negros, jovens e pobres estão nas cadeias porque eles são os extermináveis de agora. Quem não é administrado pela fábrica, quem não é administrado pela política social, vai ser administrado pelo dispositivo penal.

Essa produção de criminalização não é um defeito do sistema penal. Não é só no Brasil que se prende pobre. Em outros países também se prende pobre, porque o mecanismo penal é feito para os pobres.

Radioagência NP: Como a privatização dos presídios se insere nessa questão?

RS: Tem a privatização dos presídios e a privatização da segurança. Para cada trabalhador da segurança pública, você tem três na esfera privada.

Não é por acaso que vários senadores e deputados são donos de empresas de segurança. Quem é que vende câmera? Quem é que vende segurança? Quem é que vende cerca elétrica? É o capital. O capital também lucra com o medo.

Radioagência NP: Como você analisa o projeto de redução da idade penal?

RS: É a pior medida que possa ser empregada no Brasil. São os jovens que vão ser criminalizados. Você reduz a criminalização pra mantê-los mais tempo encarcerados.

Radioagência NP: Como se aplica, na prática, esse projeto de militarização na sociedade brasileira?

RS: É um projeto de sociabilidade capitalista. O Estado mínimo produz o Estado máximo. Isso significa que o Estado tem que montar um aparelho repressivo por causa de uma demanda por ordem e segurança criada no período neoliberal.

Analisando os orçamentos militares na América Latina, dá para ver que o Brasil está crescendo muito em seu gasto com as forças armadas. Eu não só chamaria de militarização da questão social, mas é a criminalização da questão social.

Radioagência NP: Como é possível, diante desse cenário, desmilitarizar a polícia e a política?

RS: Quanto mais ordem punitiva e penal, mais violência. Nós temos que disputar. É uma disputa ideológica. Aquilo que é vendido para a população, dizendo que vai resolver o problema, na verdade, é o que vai agravar o problema. Quanto mais mecanismo penal, mais população carcerária, mais mortes e mais conflitos vão ocorrer.

De São Paulo, para a Radioagência NP, José Coutinho Júnior e José Francisco Neto.

 

 

Fonte: Radio Agência 

+ sobre o tema

É impossível promover direitos humanos sem proteger as mulheres

Medo e trauma de experiências de violência muitas vezes...

Zika e direito ao aborto

Interrupção da gravidez como opção de mulheres atingidas pelo...

Mais de mil pessoas vivem como escravos em cidade do Amazonas

Por Agência Brasil Ministério Público do Trabalho estima em centenas...

para lembrar

Cátedra Otavio Frias Filho escolhe Muniz Sodré como titular

O professor Muniz Sodré, um dos pesquisadores mais influentes do...

Feira de Empreendedorismo Feminino com negócios liderados por mulheres

A Feira de Empreendedorismo Feminino Intercultural tem entrada gratuita,...

108 mil pessoas não sabem que são soropositivas, alerta Saúde ao lançar campanha de prevenção no carnaval

O Ministério da Saúde inicia nesta sexta-feira (17) uma campanha nos...
spot_imgspot_img

Vírus altamente contagioso tem sido o principal responsável pelos casos de infecções respiratórias em crianças

Um vírus altamente contagioso tem sido o principal responsável pelos casos atuais de infecções respiratórias em crianças. Primeiro, a Valentina foi parar na UTI. Agora,...

CNU: saiba como conferir local de prova do ‘Enem dos concursos’

O governo divulgou, nesta semana, o cartão de confirmação de prova do CNU (Concurso Nacional Unificado) com a informação sobre o local de prova...

Vacinação da gripe é ampliada para todas as pessoas acima de seis meses de idade

O Ministério da Saúde ampliou a vacinação da gripe para pessoas acima de seis meses de idade. A medida passa a valer nesta quarta-feira (1º). Antes,...
-+=