Esporte: lugar de quem?

Em primeiro lugar, acredito que faz-se necessária uma apresentação — especialmente porque faz um bom tempo que não escrevo nesse espaço. Meu nome é Geórgia, tenho 31 anos e há mais ou menos um ano e um mês minha vida tomou um rumo diferente. Virei atleta! Claro, nada olímpico, como algumas amigas andam sonhando. Mas regionalmente, tenho tido bons resultados e estou em visível progresso.

Sou fundista. Dentro do atletismo, fundistas são corredores que competem em distâncias superiores a uma milha (1,609m), sendo que a minha prova específica é a de 10,000 metros em pista e minha prova preferida é a meia-maratona (21 km). Treino com a equipe de atletismo da minha cidade, recebo pagamento para isso (apesar de ainda não estar nem perto de ser elite) e tenho circulado em um ambiente onde nunca havia estado antes: o dos atletas profissionais.

Na verdade, nunca tinha estado nem entre atletas amadores. Até dois ou três anos atrás era 100% sedentária. Porém, esse novo convívio tem me trazido muitas reflexões, uma delas é a surpresa em ver que, na minha equipe (são três equipes de fundistas que a prefeitura mantém), somos apenas eu e mais uma mulher.

Precisei deixar um pouco o ego inflado pelos resultados de lado quando percebi que é muito mais fácil para mim, Geórgia, ser atleta profissional do que para meus amigos homens que treinam comigo e correm mil vezes melhor. Especificamente, dentro do atletismo, o caminho é menos pedregoso para mulheres. O número de praticantes é bem menor, a competitividade em termos gerais acaba sendo menor, portanto, a concorrência é muito menor. Veja você que não há absolutamente nada de excepcional na minha performance e, ainda assim, fiquei bem colocada em todas as competições que participei.

E, de verdade, lamento isso. Lamento porque estou numa boa posição nas competições porque minhas amigas mulheres simplesmente não praticam esportes. E, dentre as poucas que os praticam, preferem ficar em aulas de aeróbica, step ou circuitos em academias de 30 minutos. Não tem absolutamente nada de errado com isso, ressalto. Quero que cada vez mais mulheres pratiquem dança do ventre e façam pilates, porque qualquer atividade esportiva é válida. O que quero pontuar é culturalmente percebemos que as mulheres crescem sem interesse por coisas que os homens se interessam. E, vale lembrar, não existe instinto competitivo, existe cultura competitiva. Criamos homens competitivos, mas não mulheres.

Arthur Brittan fala disso em seu livro “Masculinity and Power:

“A imagem mais popular da masculinidade na consciência de todos os dias é aquela do homem-herói, do caçador, do competidor, do conquistador. Uma coisa é certa: é a imagem que é glorificada na literatura, na arte e na midia ocidental… Em certo sentido, a crença no homem-caçador ou no herói não parece ter nenhum fundamento no mundo cotidiano onde vive a maioria dos homens. Os homens têm pouquissimas ocasiões de serem heróis, a não ser como passatempo ou nos esportes. 0 homem-caçador foi transformado no ‘homem-sustentáculo da familia’. As chances de heroísmo surgem apenas no campo dos esportes, e não na floresta durante uma perseguicão sem tréguas para alimentar a tribo”

Então, enquanto as mulheres são educadas para as tarefas do lar, para cuidar de crianças, para sermos contidas e modestas, os homens ainda são educados para matar um leão por dia. Como não é possível literalmente matar um leão por dia nas ruas de nossas cidades, a grande oportunidade de destaque e heroísmo para os homens é conquistar medalhas, superar limites, vencer competições, derrubar o oponente. Não existe apenas a divisão sexual do trabalho, existe também a divisão sexual do esporte, dentro do que é esperado de nós dentro da sociedade ou do grupo em que estamos inseridos. Força, resistência, determinação e busca de limites (indispensáveis qualidades para atletas) são características associadas à masculinidade.

Liv-Jorunn Kolnes, em “Heterosexuality as an Organizing Principle in Women’s Sport”, diz que:

Enquanto se espera que os homens sejam fisicamente fortes, espera-se que as mulheres sejam mais frágeis do que os homens com quem interagem. Quando homens e mulheres fogem a essa regra há uma tendência em categorizá-los como desviantes. Um homem com fragilidade física é tido como ‘feminilizado’ enquanto que uma mulher com força física é rotulada como ‘masculinizada’. Para participar de esportes meninos têm que ser tradicionalmente masculinos, ou seja, fortes, impetuosos e agressivos. A possibilidade da mulher fazer parte desse mundo esportivo é menor, afinal, esporte nunca teve como finalidade tornar a mulher mais feminina.”

Sendo assim, tem sido também uma luta feminina (feminista?) entrar para o mundo dos esportes, quando historicamente nossa participação como atletas foi vedada. E, acredite se quiser, em 1965 aqui no Brasil o CND (Conselho Nacional de Desportos) baixou uma deliberação que instruiu entidades esportivas no Brasil sobre a participação feminina em modalidades esportivas, estabelecendo: “não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo, halterofilismo e beisebol”. Pois é.

Isso tudo para não entrar na discussão de como se lida com as atletas na mídia e cobertura esportiva. Ok, as mulheres podem ser atletas, mas como enfeite. Dificilmente são retratadas por suas qualidades esportivas, mas sim por sua beleza. A maior parte do tempo dado as coberturas esportivas é dedicada aos homens. Quando inclui mulheres, incorre em dois tipos de erro: ou compara a performance de uma mulher com a de um homem, ou tece comentários idiotas sobre forma corporal, beleza, sensualidade. Ou seja, as conquistas femininas no esporte são menos importantes do que as barrigas chapadas.

Claro, só tenho a agradecer às feministas que vieram antes de mim e deram a cara a tapa para garantir hoje meu espaço dentro do atletismo. Àquelas que romperam fronteiras, brigaram, lutaram, tiveram sua sexualidade questionada, mas abriram portas para o reconhecimento que ainda estamos ampliando. Gostei de me sentir um pouco transgressora ao me tornar atleta. Sempre gostei de transgressões. Um beijo de admiração às minhas amigas atletas que estão junto comigo nesse barco.

Fonte: Blogueiras Feministas

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