A Consciência de Todo Dia

Dia 20 já passou. O mês de novembro já acabou. Mas ainda é preciso falar.

Enviado por Lude Elim de Queiroz Borges via Guest Post para o Portal Geledés 

Dia 20 de novembro foi o dia da Consciência Negra e homenagem a Zumbi dos Palmares, um escravo que era líder do Quilombo dos Palmares e lutou incessantemente pela libertação dos escravos no Brasil. Zumbi morreu em 20 de Novembro de 1695.

Eu falo sobre esse assunto hoje, pois todo dia é dia de refletir para nos tornarmos verdadeiramente conscientes.

Então lá vai um TEXTÃO.

E o que é então ter a consciência negra se você não é negro e nunca vivenciou nenhuma historia de luta contra o racismo e preconceito? O que faz de uma pessoa que não compartilha os mesmos sentimentos de um negro tornar-se consciente disso?

Aí, você vai me dizer que deve partir das escolas fazer esse trabalho. Então na minha humilde concepção disponho-me em discorrer sobre esse assunto por que hoje sou professora, mas lembro-me muito bem quando em meu tempo de escola guardavam o dia 20 de novembro para falar sobre o negro. Sempre o destacando como algo diferente, um bibelô que devíamos observar incumbindo essa difícil tarefa ao professor de História com meras fotos, desenhos simbólicos e fatos históricos do período da escravidão.

Na minha mente aquilo era algo tão surreal envolto ao vazio, desconectado do mundo em que vivíamos. Tão vago como o “Dia do Índio” (pra quem não sabe comemora-se no dia 19 de abri) quando ficava de responsabilidade do professor de Arte distribuir aos alunos uma folha de papel com um Índio desenhado e nos mandava pintar.

Tá, e daí? Acabou o dia do Índio. Acabou o dia do Negro. Vamos pra matéria da aula.

E daí que depois de me engajar em projetos que abordam questões raciais e outros temas complexos, divergentes e discriminatórios do qual fazem parte da vida da grande maioria da sociedade brasileira realizei um plano de ação na escola em que leciono o qual desenvolvo o Empoderamento destes jovens como cidadãos conscientemente mais ativos e participativos.

Então quando fui falar sobre o dia da Consciência Negra houve muita resistência de alguns alunos negros e, demonstrando uma revolta quanto ao tema me questionaram o porquê desse assunto de novo, toda vez a mesma coisa e dizendo-me que ele escuta esse blá blá blá a vida inteira (poxa que saco). Então me recordei do meu tempo de escola, de tudo o que eu já disse antes aqui e me coloquei no lugar daquele aluno.

Era como se todos apontassem o dedo pra ele criticando-o e crucificando-o porquê era negro e tinha um dia destinado só pra ele. Alguns ainda me perguntaram o porquê não ter o dia da consciência branca. Assim como costumam fazer no dia mulher quando questionam um dia para os homens também.

Tais circunstâncias me fizeram repensar que celebrarmos o dia da Consciência Negra não é só dizer que o negro também é humano, que todos temos direitos iguais, tirar fotos de mãos dadas, e esse monte de blá blá blá, como disse meu aluno, porque era isso que eu sempre ouvia nas aulas. Sempre tinha uma apresentação ou outra nas escolas, mas era tudo tão vazio que acabara por deixar um ponto de interrogação no ar:

– Tá, somos todos iguais – a professora dizia. Mas, e daí?… e o resto?…

Por que existem ainda tantas pessoas que não se sentam ao lado de um negro? Por que tantas humilhações nas escolas, nas ruas, no trabalho?

Pensar em Consciência Negra e se fazer consciente é buscar as respostas para essas perguntas. É entender o porquê dessa discriminação e tanto ódio disseminado por um povo, por uma raça.

Então se faça as perguntas e procure as respostas. Eu encontrei algumas.

Qual a origem da escravidão?

E por que escravizaram os Negros e não os Brancos ou qualquer outra raça?

Em alguns livros didáticos podemos encontrar diversas falas que justifiquem a escravização e o tráfico negreiro:
“O índio, acostumado com a liberdade, recusou-se ao trabalho escravo, o que obrigou o colonizador português a ir buscar essa mão de obra escrava no continente africano onde os negros, acostumados com a escravidão já existente em sua terra, não se importavam com sua sorte.”

Por tanto, poderíamos entender que essa resistência do índio ao processo de escravização teve duas consequências notáveis: a massiva exterminação do mesmo e a busca dos africanos que aqui foram deportados para cumprir o que os índios não puderam fazer. (Munanga; Gomes, 2004 p. 20)

Porém confirmar essa fala é tão vago quanto às aulas de história do Brasil na escola. Escritas históricas comprovam que o sistema de escravidão já existia na África tradicional, no entanto, Munanga; Gomes (2004) descrevem em seu livro que o conceito de escravo, no contexto das realidades africanas, é muito distinto daquele aplicado no Brasil ou em outras culturas.

“Na África tradicional o conceito de escravo designava todos aqueles que estão ou estiveram em uma sujeição ou subalternidade por inúmeros motivos: religioso, parentesco, dívida, por um soberano, protetor ou líder.” (Munanga; Gomes, 2004 p. 25)

Munanga; Gomes (2004) ainda ressaltam que em outros casos quando havia guerra entre as sociedades aquela que saísse vitoriosa poderia integrar seu império e capturar algumas pessoas. Os homens cativos trabalhavam como servos e as mulheres ficavam em haréns como reprodutoras, no entanto, os filhos desses cativos nasciam totalmente livres. Em algumas sociedades africanas era exercida também a pratica do penhor humano e, talvez essa forma seja a mais parecida com o tráfico negreiro implantado pelo Ocidente e Europa, porém a condição de penhora do cativo era provisória e reversível, pois com a extinção da dívida teoricamente este teria direito à alforria.
Percebemos então que todas essas situações de exploração, sujeição, de estar submetido, subjugado, dependente, servo, etc. realmente existiram no continente africano, mas nem por isso, devemos ver nelas a existência de certo “tráfico negreiro” entre os povos africanos, pois para Munanga; Gomes (2004) a relação comercial que caracteriza o tráfico refere-se ao enriquecimento e acumulação de riqueza por seus responsáveis e isso só ocorreu a partir de uma intervenção externa, Árabe e Ocidental com a colonização do continente.

O poder lucrativo desse sistema de tráfico humano se tornou tão intenso que é só voltarmos para o Brasil de 1600 quando os primeiros navios negreiros começaram a deportar por aqui. Ou ainda mais recente podemos retomar alguns filmes sobre a escravidão para notarmos que havia pessoas que trabalhavam apenas com a venda de escravos, ou seja, vender pessoas tornara-se um negócio totalmente rentável quanto vender um imóvel ou um pedaço de terra.
“Por isso não podemos aceitar a tese de um sistema escravista africano que justificaria e legitimaria as formas de escravidão que deram origem às primeiras separações e deportações de africanos historicamente conhecidas.” (Mangana; Gomes, 2004, p. 27)

Entendemos então que esse sistema escravagista e opressor não é de origem e exclusividade do continente africano e que o mesmo nem sempre foi feito de guerras, luta, fome e miséria como o conhecemos. Antes da colonização da África muito pesquisadores que lá estiveram descreveram o continente e seus países, impérios e culturas com simpatia, admiração das formas políticas, natureza, paisagem, as pessoas eram consideradas bonitas, etc.

Segundo, Mungana; Gomes (2004) após a conferência de Berlim (1825) que definiu a partilha colonial da África entre países europeus interessados em explorar política e economicamente esse continente, as imagens simpáticas e tranquilizadoras começaram a sombrear. A infância inocente foi substituída pela imagem de subumanos para justificar a invasão, a manutenção dos processos de colonização e a exploração econômica no continente e para facilitar a operação de sujeição.

“Desapareceram as belezas naturais dos territórios e das mulheres e crianças negras, substituídas pelos miasmas e outros horrores da selva, barbárie, mesquinharia e atraso, para justificar a Missão Civilizadora, de responsabilidade dos europeus colonizadores. Os povos se tornaram sem cultura, sem história, sem identidade e mergulhados na bestialidade. Reinos e impérios foram substituídos por imagens de hordas e tribos primitivas em estado de guerra permanente, umas as outras, para justificar e legitimar a missão pacificadora da colonização dessas sociedades, ora em diante qualificadas como ignorantes e anárquicas.

A exploração e a dominação brutal às quais foram submetidos os africanos exigiam que fossem considerados como brutos. Para justificar e legitimar a violência, a humilhação, os trabalhos forçados e a negação da humanidade dos africanos, era preciso bestializar a imagem desses homens e mulheres.” (Munanga; Gomes, 2004, p. 33-34)
Através da leitura de Munanga e dentre tantas outras que fiz na minha busca insistente por tentar entender o porquê de tanto ódio a uma raça pude compreender e refletir o quão foi oprimido o povo africano, um povo que era livre, desenvolvido por sua cultura, ciência e religião, tão distinto entre seus reinos, porém tão tolerante entre suas crenças e impérios e que por ganância de outros lhes fora tirado a liberdade.

Para termos uma ideia, no século XVII o tráfico negreiro se tornou tão intenso, que dominou o espaço geográfico e populacional de muitos territórios. Em Munanga; Gomes (2004) confirma-se que no Brasil colonial, 63% da população no país eram de negros (escravizados) contra 16% de brancos (europeus) e 21% mestiços (mistura entre brancos, negros e índios).

Hoje estatísticas comprovam que 53% da população brasileira é negra e/ou afrodescendente, ou seja, o Brasil é um país NEGRO.

Porém, o negro brasileiro ainda não é livre, pelo contrário, é visto como um libertino, infrator, causador de revoltas, desfavorecido, incapaz, entre tantos outros adjetivos cruéis. O negro não tem direito a escolhas, mas sim àquilo que lhe fora imposto na sociedade como cultura, religião, porte físico, cabelo, pele, nariz, emprego, profissão, cinema, televisão, etc. Em tudo o negro tem que se adaptar para se igualar aos padrões, só que dessa forma ele não se torna igual socialmente, mas sim, se anula de suas raízes, de sua essência, pois não é aceito como é. Por isso, continuam a lutar por liberdade desde que foram arrancados de suas terras africanas a mais de 400 anos.

Buscar conhecimento no passado para compreender o futuro só reforça as lutas pelos direitos de igualdade racial, visto que advimos de uma única raça, seja por comprovação científica ou religiosa todas apontam para um mesmo sentido ou que viemos do “macaco” ou de Adão e Eva. E isso resulta numa única origem de raça, espécie ou descendência.

Dessa forma abrimos nossa mente para compreender que tratar um ser humano com indiferença por qualquer que seja a razão discriminatória é segregar a própria origem humana. É impedir você e o outro de ser quem são. E entender esse princípio é que nos faz verdadeiramente conscientes.

BIBLIOGRAFIA
MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. Para entender o Negro no Brasil de Hoje: História, Realidades, Problemas e Caminhos. 1 ed. São Paulo: Global, 2004.

LOPES, Nei. História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. São Paulo: Barsa Planeta, 2008.

SOUZA, Mariana de Mello. África e Brasil Africano. 2 ed. São Paulo: Ática, 2008.

DÁSKALOS, Maria Alexandre; APA, Lívia; BARBEITOS, Arlindo. Poesia Africana de Língua Portuguesa (antologia). Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003.

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