A Cor do Espaço Urbano

A partir da análise da configuração urbana do DF fica mais fácil entender como a desigualdade territorial age para a manutenção das desigualdades raciais brasileiras.

Marcel Cláudio Sant’Ana, Mestre em Planejamento Urbano (UnB) e assessor técnico do Ministério das Cidades

Texto do site Jornal Ìrohìn
http://www.irohin.org.br

Munido de um estoque considerável de senso comum, custa ao brasileiro acreditar que sob certos aspectos a instituição de práticas racistas no Brasil se equipara à instituição de práticas racistas da sociedade norte- americana ou sul-africana: afinal, bombardeado desde sua infância pela ideologia da democracia racial, âmago da nossa noção de identidade nacional, este brasileiro, no ‘melhor espírito’ da Liberté – Egalité – Fraternité, poucas chances tem de se questionar quanto à ação de fatores raciais atuando na conformação da estrutura social brasileira, na estratificação social e conseqüente desigualdade.

Nesta perspectiva, onde os fatores raciais são desconsiderados, pois não podem ser aceitos no plano oficial de nossas práticas culturais apesar de reinarem no plano oficioso, e sob o pano de fundo de uma teoria economicista, este brasileiro entende a desigualdade social apenas pelo viés econômico, que abarca a população como um todo, independentemente do grupo racial a qual pertença, restaurando a segurança do nosso mito de origem — um país construído pela relação harmônica entre brancos, índios e negros—, mais que isso, lhe possibilita solidificar a naturalização das desigualdades raciais e da apropriação da riqueza nacional e das benesses do Estado pela população branca, sem o inconveniente de conflitos raciais explícitos.

Ao entrarmos no questionamento sobre as nossas cidades, sobre as desigualdades sociais desenhadas no território físico, os mesmos pressupostos são validados pelo senso comum e pelas teorias deterministas de fundo economicista: se por um lado a visão ortodoxa da ciência econômica quer levar a cabo as explicações sobre estratificação social, na mesma direção, a reboque neste processo, também encontramos uma linha de pensamento sobre a estruturação do espaço urbano como processo resultante do determinismo econômico a reger a ação dos indivíduos. Assim, as pesquisas sobre segregação sócio-espacial e desigualdade urbana têm se estruturado sob uma fundamentação determinista, onde a economia, ou melhor, o domínio do capital financeiro, os fatores de ordem econômica, diretamente e indiretamente, independente da realidade social e da localidade desta no globo terrestre (à luz de um processo econômico globalizado), é tomado como fundamento para o entendimento das questões espaciais intra-urbanas.

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Deste discurso falacioso um ponto deve ser tomado por verídico, as ações e atores a agirem na conformação da nossa estrutura social são os mesmos a agirem na conformação do nosso espaço urbano. Espaço territorial e espaço social são elos indissociáveis de uma mesma corrente, elos que se validam um ao outro para se afirmarem e reforçar a própria estrutura. Desta forma, ao pensarmos as cidades brasileiras devemos pensar o seu papel frente ao nosso processo de formação socioeconômico, às nossas práticas culturais/ideológicas, às respostas dadas por este para a manutenção de um status quo que se inicia ainda no período colonial com o escravismo e chega aos dias de hoje, em uma sociedade de economia de mercado.

Aqui as desigualdades urbanas assumem um importante papel para a manutenção das desigualdades sociais no Brasil. A partir da análise da configuração urbana do Distrito Federal (DF) e da conformação histórica de seu espaço urbano fica mais claro falar em estruturação urbana da segregação racial, fica mais claro entender como a desigualdade territorial age para a manutenção das desigualdades raciais brasileiras.

O DF apresenta uma situação particular em termos de composição racial da população, negros e brancos assumem uma igualdade numérica: a população branca responde por 49,15% da população total e a população negra por 49,57% (PDAD-2004). Mas essa igualdade não implica em igual distribuição no espaço urbano, muito menos em apropriação de equipamentos públicos e serviços urbanos: Como podemos ver no mapa, a população negra se concentra nas regiões periféricas do DF ou em áreas de degradação sócio-ambiental mais próximas ao núcleo de trabalho e renda — Brasília. Essa concentração da população negra em áreas periféricas coincide diretamente com a distribuição da população de analfabetos, com a concentração de ocorrências policiais, de desemprego, de irregularidade fundiária, de habitações sub-normais, de menor oferta de serviços públicos (principalmente de saúde e educação), de equipamentos de lazer, entre outros. O que acaba por constituir uma intersecção de variáveis negativas sobre a população negra.

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Assim temos nas Regiões Administrativas (RA) com maior concentração da população negra, como a Estrutural (66%), o Recanto das Emas (63%) e Brazlândia (64%), uma média de renda domiciliar mensal de R$ 790,50, enquanto as RA’s de maioria branca, como Lago Sul (85%), Lago Norte (70%) e Brasília (77%),uma renda de R$ 8408,00. Vale aqui ressaltar os extremos da distribuição de renda e da concentração de população negra: o Lago Sul apresenta uma renda de R$ 11.276,00 enquanto a Estrutural de R$ 499,00.

A exemplo do que ocorre com a distribuição da renda, ao nos depararmos com os dados que caracterizam a escolarização e a taxa de analfabetismo da população, a mesma condição de exclusão se repente: as RA’s com maior porcentagem de população nordestina, negra, com menor renda e maior porcentagem de população jovem, detém as piores posições nas taxas de escolarização. A população com nível superior completo está majoritariamente concentrada nas Regiões Administrativas com maior porcentagem de população branca. Já a população com 1º grau incompleto está majoritariamente concentrada nas Ra’s com maior porcentagem de população negra.

Ao se falar em irregularidade fundiária a mesma oposição é verificada, nas RA’s com maior proporção de população negra (citadas no parágrafo anterior) apresentam a média de 28,3% dos terrenos em situação de irregularidade fundiária, enquanto que as RA’s com maior concentração de população branca apresentam a média de 1.02% de terrenos em situação irregular.

Essas oposições entre os territórios de maior concentração de pessoas negras com os de maior concentração de população de cor branca se reflete em diversas variáveis pesquisadas. Em muito isso é devido à própria estruturação do espaço urbano do Distrito Federal constituído ainda na sua construção: Brasília, o Plano Piloto, estava destinada para a habitação da alta e média burocracia estatal que seria transferida do Rio de Janeiro, brancos em sua maioria, não estava previsto o assentamento dos milhares de nordestinos, negros em sua maioria, que iludidos pelo sonho do “Eldorado do Cerrado” vieram construir a capital do país.

Aos negros acabaram sendo destinadas as áreas distantes do núcleo destinado à população branca: áreas desestruturadas, com infra-estrutura urbana desigual, com menor possibilidade de acesso ao emprego, educação e lazer — áreas com baixíssima qualidade de vida urbana. Podemos falar em uma segregação planejada pelo Estado, onde nordestinos, negros, não cabiam.

E neste jogo oficioso, de constante solidificação da apropriação das vantagens sociais pelo grupamento social de cor branca, em detrimento da população negra, mais uma vez nordestinos e negros seriam colocados à margem do maravilhoso projeto de desenvolvimento da nação.

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