“Creio que quando nós negros contamos nossas próprias histórias podemos mudar o eixo do mundo e narrar a verdadeira história da prosperidade geracional e da riqueza da alma que não se conta em nossos livros de história” Beyoncé
O filme musical da cantora pop Beyoncé Knowles, leva o nome de Black is King em referência a realeza negra. Em pouco mais de 1h de duração a Obra-filme traz elementos do movimento afro futurista, reacende o debate político-cultural em torno da identidade africana na diáspora e de como a história contada por nós pretos (as), não falará apenas de miséria, heróis brancos e escravizados pretos.
Falar da miséria representa, objetivamente, a intervenção e usurpação do continente Europeu e suas consequências. Falar da riqueza em África significa transcender o debate e lançar luz sob a necessidade de um novo marco civilizacional que considere o legado africano. São debates que surgem com o lançamento da obra, já comprovando de cara sua relevância para o momento.
Retornar ao lar de origem tendo África como casa, é principalmente um chamado para os pretos em diáspora, mas também para a humanidade, afinal é de lá que tudo se originou. Daí a importância da obra musical e visual de uma das principais artistas pop do mundo todo. Em suas redes sociais e na tradução de suas músicas, percebemos que Beyoncé está em um processo de se encontrar enquanto mulher preta em diáspora, e compartilha conosco esse momento, convidando mais pessoas pretas a partilhar do autoconhecimento e união preta.
Black is King acaba por emergir em um momento onde a pauta antirracista passa a ocupar o centro do debate mundial sobre democracia e direitos humanos, fortalecendo a história política da arte e os signos de alguns países do continente africano.
O álbum foi produzido pela própria cantora e teve a participação de pessoas com origem africana na direção e fotografia Kwasi Fordjour, Blitz Bazawule, Jenn Nkiru e Emmanuel Adjei; além do marido Jay-Z, da filha Blue Ivy, contou com convidados especiais como Lupita Nyong’o, Naomi Campbell e Pharrell Williams. O álbum se encontra disponível na versão completa em plataforma digital da Walt Disney, mas já teve trechos divulgados pela própria cantora em suas redes sociais e no YouTube.
Em referência ao Filme O Rei Leão – 2019 (curadoria de Beyoncé) e no álbum da cantora The Lion king: the gift (2019) que dá origem a trilha sonora do filme, o filme Black is King de sua autoria recria os personagens como seres humanos pretos, enquanto narra e exibe elementos do outro filme, com estética polemicamente exuberante, danças e artistas locais, com contribuição de países como Nigéria e Gana. Tudo para nos dizer que o menino Simba, o filho do Rei, está em busca de suas origens como forma de resistir ao racismo. Simba seria o preto da diáspora que se perdeu de suas raízes e o Rei (mãe) seria o continente africano, fonte da ancestralidade (coroa) a que Simba busca por identidade, poder e proteção.
Como toda Obra de grande repercussão que é lançada ao público, as críticas surgiram, e servem para uma construção dialética maior.
No Brasil, a antropóloga Lilia Schwarcz, em artigo publicado pela Folha de São Paulo, considerou que a cantora “glamorizou” a luta contra o racismo, e por isso foi fortemente rebatida por segmentos da luta antirracista no país. Lilia cochilou no debate e foi infeliz quando tentou ensinar a uma mulher preta como resistir ao racismo. Uma retórica comum daqueles que tendem a clamar a luta de classes como se um negro milionário estivesse livre de ser atingido pelo racismo e de falar sobre isso a partir desse lugar.
A crítica da branquitude intelectual e rica que pede para nós negros lermos e/ou sairmos da sala quando falamos sobre nós, sobre nossas origens e percepções do que vivemos, tem muito mais a dizer sobre eles do que sobre nós. A crítica da antropóloga serve como construção dialética e representa a branquitude que diz ser aliada, mas que ainda tem muito mais a aprender ouvindo (além do olhar e escrever), um exercício fundamental na antropologia.
Mas essa não foi e esta longe de ser a única crítica a ser debatida e considerada! Saindo um pouco do Brasil, antes mesmo do lançamento oficial do filme musical, alguns críticos do próprio continente africano questionaram o teaser divulgado pela cantora, reacendendo o debate sobre apropriação cultural por parte do ocidente, além de estereótipos sobre o continente. Essa perspectiva que ajuda no exercício dialético, também foi apontada pela antropóloga brasileira, só que depois do lançamento.
Tal perspectiva não deve ser anulada uma vez que parte daí a visão dos pretos em diáspora de encontro e/ou conflito com pretos de diferentes países africanos, com diferentes visões e movimentos. Visões que jamais serão únicas.
Segundo a jornalista Chanté Joseph em texto publicado no The Guardian, quando o filme é lançado, acaba por mostrar exatamente o contrário das críticas sobre apropriação e estigma, pois no processo criativo também se considera a visão dos artistas e criadores locais, além da obra ultrapassar os estereótipos e até mesmo questioná-los. Nas palavras da escritora: “O filme inspira todo o continente, da Namíbia a Lagos: mas como O Rei Leão se passa no leste da África, seria ótimo ver uma inclusão mais profunda dos países e culturas do leste da África.” – tradução livre.
Outro ponto colocado foi à acerca da plataforma da Disney, que não é acessível para a maioria daqueles que anseiam com o encontro cultural e o debate que aflora – o público alvo.
A empresa cinematográfica não figura imparcial na história recente quando pensamos nos conflitos da guerra fria, e das representações de personagens racistas, já publicitadas pela mesma. Sabemos, por exemplo, que a as lutas de libertação entre os anos 50-80, em alguns países africanos, tiveram apoio político, financeiro e militar de países socialistas como Cuba e comunistas como União Soviética e China (para ficar em poucos exemplos e de forma bem resumida), enquanto a empresa foi contrária e tomou lado da guerra a favor dos EUA como potência, inclusive criando narrativas favoráveis que acabavam por reforçar o neocolonialismo e exploração do continente.
A Disneylândia sempre foi apresentada como sendo um mundo dos brancos, muitos olham com receito a indústria cultural que absorve as pautas da luta antirracista sem apresentar concretude em suas práticas ao insistir continuar transmitindo em suas plataformas digitais, criações extremamente racistas do passado, acrescentando apenas ressalvas; enquanto se mantém em pé, em termos de lucro, em um momento de crise para muitas empresas que estão se distanciando do mercado financeiro e de grandes aglomerados, fechando suas portas.
As críticas precisam ser consideradas, mas a meu ver, não se anula o poder simbólico que uma obra dessa magnitude carrega. O próprio debate que gera, diz muito sobre a importância de sua existência para nossos dias atuais. Quem sabe com esse ponta pé com salto de cristal e pompa de oncinha, possamos olhar carinhosamente para o continente africano e buscar por mais respostas para os problemas criados pelo ocidente e abrir caminhos para os processos criativos que emergem de lá e da Améfrica Ladina.
Beyoncé não errou, acertou na mira! Usou toda sua visibilidade para enxergar melhor o alvo.
E a pergunta que fica para quem chegou até aqui é a seguinte: com quem contar nas lutas de hoje?
Referências
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/07/31/O-novo-%C3%A1lbum-visual-de-Beyonc%C3%A9.-E-a-evolu%C3%A7%C3%A3o-da-artista
https://www.theguardian.com/film/2020/jul/31/black-is-king-review-beyonce-disney-plus-lion-king
https://almapreta.com/editorias/o-quilombo/black-is-king-mulher-branca-nao-deve-dizer-como-mulher-negra-deve-contar-sua-historia
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/filme-de-beyonce-erra-ao-glamorizar-negritude-com-estampa-de-oncinha.shtml?origin=folha
https://www.youtube.com/watch?v=LoFGiccb0Ks
https://www.youtube.com/watch?v=LBgE9AqrKwA
https://www.youtube.com/watch?v=tJeIZ_5KN5A
https://www.youtube.com/watch?v=-fHagvQJ1sE