Na mais contundente nota emitida até aqui sobre o ataque terrorista do Hamas e a reação israelense, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apelou pela vida das crianças. Mereceu elogio do secretário-geral da ONU, António Guterres, por tratar a violência contra meninas e meninos israelenses e palestinos como “a mais grave violação aos direitos humanos” na tragédia que alcança o Oriente Médio. É relevante que o mandatário do país que ora ocupa a presidência do Conselho de Segurança da ONU, ainda que por somente um mês, apele por “humanidade na insanidade da guerra”.
O brasileiro propôs que o Hamas liberte as crianças israelenses sequestradas das famílias pelos terroristas e que Israel interrompa os bombardeios, para que os pequenos palestinos deixem a Faixa de Gaza com as mães na direção do Egito. Guterres, já no terceiro dia do confronto, chamou a atenção para crimes de guerra cometidos pelas duas partes e apelou pela abertura de um corredor humanitário para garantir alimentos, água e assistência aos civis palestinos.
Na quarta-feira, a ONU informou que 11 funcionários da agência para refugiados foram mortos por bombardeios israelenses em Gaza; 18 escolas transformadas em abrigo também foram danificadas. Na véspera, o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, já tinha alertado sobre a degradação da situação humanitária e pediu segurança para os trabalhadores que estão na região para assistir crianças e famílias com serviços e itens básicos à sobrevivência. Até ali, o total de mortos não tinha chegado a mil em Israel e 700 em Gaza; anteontem, se aproximava de 2.500.
A Human Rights Watch, em nota na segunda-feira, chamou a atenção para a principal regra do direito humanitário internacional: num conflito, as partes devem distinguir combatentes de civis. Estes nunca poderão sofrer ataques homicidas; tratamento cruel, humilhante ou degradante; ultraje à dignidade pessoal; tortura nem ser tomados reféns. Vale para todas as pessoas — em particular, idosos; sobretudo, crianças.
Fechar os olhos para a violência contra bebês, meninas e meninos, moças e rapazes, em meio à barbárie, é dar as costas ao futuro. Não há como falar nem de esperança nem de paz, quando menores de idade estão sequestrados, são assassinados, testemunham em tenra idade a violência extrema. A cada criança que desaparece ou morre em vida com o coração congelado pelo luto e pela brutalidade, a humanidade esmaece.
Crianças estão em perigo em Gaza e em Israel. Estão em perigo na Ucrânia. Estão em perigo no Brasil. Em fins de setembro, a ONG Redes da Maré lançou pesquisa sobre a primeira infância no conjunto de favelas. Nas 16 comunidades, vivem 14 mil miúdos de 0 a 6 anos. Do total de famílias com crianças, 57,4% não recebem nenhum benefício social, dois terços enfrentam dificuldades no acesso à saúde e a equipamentos públicos; 62,9% dos moradores na faixa até 3 anos estão fora da creche.
No início da semana, uma megaoperação policial na Maré, na Cidade de Deus e no Complexo da Penha deixou 23 mil crianças e adolescentes sem aula. Só na Maré, 41 escolas suspenderam atividade, prejudicando 17 mil estudantes; 990 atendimentos médicos foram suspensos; 280 refeições do projeto Prato Feito Carioca não foram distribuídas a pessoas em situação de fome.
Em 2022, no Brasil, houve registro de 74.930 casos de estupro, o maior número da série histórica, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Do total, 61,4% tinham de 0 a 13 anos, 10,4% até 4 aninhos. Ao todo, 22.527 crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos; seis em dez tinham até 10 anos.
De 2019 a 2022, a proporção de crianças brasileiras de até 7 anos que não sabem ler nem escrever dobrou de 20% para 40%, segundo relatório divulgado pelo Unicef na antevéspera do Dia da Criança, 12 de outubro. O percentual de meninas e meninos na pobreza multidimensional chegava a 60,3%. Significa que 31,9 milhões de crianças e adolescentes brasileiros estão privados de um ou mais direitos (alimentação, educação, moradia, água, saneamento e informação), além da insuficiência de renda.
A situação da infância é dramática mundo afora, se deteriora em Gaza e Israel, é grave no Brasil. Enquanto isso, setores do Legislativo brasileiro estão ocupados em proibir o casamento homoafetivo — assegurado pelo Supremo Tribunal Federal há mais de década — e em aliviar a tributação de revólveres, pistolas e acessórios. Nota técnica do Instituto Sou da Paz mostrou que, como está, a PEC 45/2023, em tramitação no Senado, reduzirá a alíquota no Rio de Janeiro, de 75% para 10%, e em São Paulo, de 63% para 10%. Três em cada quatro mortes violentas intencionais no país são cometidas com armas de fogo. Perto de um décimo das vítimas de homicídio tem até 17 anos.