A perversidade que existe nas “princesas”

Crianças do sexo feminino nascem num mundo cor-de-rosa. São incentivadas a serem princesas, finas, educadas, delicadas, gentis. São elogiadas quando assim se comportam. Mas esse é só um lado da moeda. O outro, quase nunca falado, torna-se obscuro. O que não significa isolado, raro ou pouco experimentado. A obscuridade nesse caso serve para esconder a vileza gritante, mas um grito que é dirigido, sussurrado nos ouvidos de quem foi treinada para sorrir, mesmo diante de uma violência disfarçada de elogio. A obscuridade é como efeito do brilho incandescente das coroas que alimentam o desejo surreal do principado.

Criamos princesas mas no meio de selvagens. Estava num show, ambiente apertado, daqueles que é preciso andar em fila até achar um lugar para a turma se acomodar. Música ótima, galera animada, muitas “princesas” numa boa. Dois caras vêm em minha direção, querem passar, fico de lado para facilitar, o primeiro, em meu ouvido: – Princesa. E segue seu caminho, sem cerimônia, muito provavelmente sentindo-se rei, com dezenas de princesas ao seu alcance. No meio da multidão, me veio à lembrança os tempos bárbaros, quando cavaleiros medievais, com suas espadas, perfuravam quem estivesse no caminho. Princesa, naquela hora, muito longe de revelar um mundo cor-de-rosa, soou como golpe desferido à queima-roupa. Sem chance de defesa, um ataque.

Diante de tantos casos muito mais graves de abusos e estupros, algo assim, tão cotidiano, parece bobagem. Mas não é, justamente por ser corriqueiro. Quantos homens se sentem autorizados a chegar tão perto dos meus ouvidos, invadir meu instante, falar com intimidade? Quais minhas condições de reagir? Quantas “princesas” estão por aí, como que à disposição? Será mesmo um elogio a intenção? Por que não um sorriso, então? Um olhar? Um cumprimento qualquer? A perversidade é não dar chance, é inibir, é ser invasivo, é contar com a passividade aterrorizada da princesa para gozar do prazer do domínio, como se as mulheres fossem objetos, estivessem ali para isso. Olhei para aquele homem forte, com um outro atrás, depois de ter passado por mim, e pensei: quantos babacas elevamos ao lugar de rei?

Desconstruir esta cultura leva tempo. Reduzir o brilho de um mundo inexistente e preparar crianças, meninos e meninas, para atuarem com respeito na vida real já pode mudar muita coisa. As princesas, tão fofinhas, podem até ser criadas, mas não sejamos esdrúxulos, não as enganemos com contos de fadas.

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