Culpa

Nós, mulheres pretas temos um processo de culpa latente que nos acompanha desde a infância.

Iniciei o texto com um “nós”, porém pretendo falar por mim, mesmo sabendo que este é um assunto recorrente nos textos e histórias que já tive a oportunidade de ler ou ouvir no que diz respeito às nossas vivências.

Eu poderia tentar fazer uma rápida pesquisa sobre a origem do termo “culpa” e sua função histórica de nos acorrentar para todo um sempre, mas me deu preguiça. Então vou falar somente do agora.

Recentemente conversando com uma amiga, chegamos a conclusão sobre uma nova estratégia em que os homens para aventurarem suas novas conquistas, assumem que são casados. Isso soa estranho, mas nitidamente eles sabiamente descobriram uma forma de se eximirem da culpa e depois de um provocante envolvimento deixam por nossa conta a decisão de nos relacionarmos ou não. Se o fizermos teremos incríveis momentos de “liberdade” e “prazer” e se decidirmos pelo não, eles partirão tranquilamente para novas investidas e nós ficaremos a pensar: Como não conseguimos ser livres????? E sofremos….

Preciso registrar aqui que terminei a frase acima com um sorrisinho no canto da boca.

Mas como este assunto vai gerar muito tre-le-le, penso apenas que passamos uma boa parte da vida procurando as relações perfeitas. Lembrando que em muito, estas perfeições virão de realidades que não são as nossas, mas de contos infantis com imagens de mulheres brancas e esguias ou de novelas com as mesmas imagens. Vocês sambem bem que apesar das mudanças, a base de muita luta, quais são os papeis que nos cabe.

Vendo uma série coreana que retrata as questões do suicídio tão praticado naquelas bandas, de novo me vejo refletindo sobre como mulheres estupradas assumem na maioria das vezes esta “culpa” de provocarem o fato, tirando de suas mentes qualquer possibilidade de se verem como vítimas. Aqui no Brasil, acredito que o estupro não nos leva as vias de fato com tanta frequência (pelo menos não nas vias de fato físico, mas o emocional tem sua vida ceifada da mesma forma), mas esta culpa é tão naturalizada quanto na Coreia.

Lembrei de um relacionamento em que fadado ao fracasso, eu ficava me perguntando sobre o que teria feito diferente para que desse certo. (Ops…o sorrisinho voltou).

Acho que são tantos exemplos sobre os pesos que carregamos que vou deixar por conta de vocês buscarem os exemplos, mas da minha parte me sinto grata por ser alguém incomodada com o mundo, nunca estou satisfeita com respostas e isso me levou para o mundo da História e da pesquisa. Sem este universo de não me contentar com uma única resposta eu jamais me sentiria completamente à vontade sendo um peixe fora d’agua. 

Exercícios de reprogramação mental nos ajudam a reformular o que pensamos e como agimos, dizem que a religião também faz isso, mas eu continuo preferindo sugerir o aprofundamento, por acredito que até mesmo a fé precisa de aprofundamento, base e consistência. E como tenho um pé atrás com as instituições, vamos cada um puxar a responsabilidade para si e pronto.

Se livrar da culpa não é simples, mas é possível. Porém será necessário boa vontade e disposição, porque se redescobrir não é simples. Vai ter muita leitura, vai ter muito choro. Parênteses para quando li Frantz Fanon a primeira vez.

Nós, que somos o povo que veio de África e temos nossa ancestralidade fincada naquele chão, fomos reprogramados para esquecer o que era viver em comunidade, com orixás em nossas cabeças e bastava ouvir com o coração para se assimilar uma história e ela se tornar verdadeira. Fomos trazidos para nos submetermos a um povo egoísta, individualista, que distorcem o próprio conceito do deus que cultuam e mentem para que suas histórias sejam consideradas únicas.

A culpa que trazemos hoje remota desta época em que fomos arrancados do nosso chão. Afinal, como acreditar que somos o que queremos ser se nos ensinaram a ser o que eles querem.

Para nós, mulheres pretas esta culpa não vai ser arrancada sem esforço. Será preciso paciência para redescobrir quem somos. E só aprendemos a dizer “não”, quando sabemos o significado do “sim”. E “sim”, nas filosofias africanas o respeito as mulheres é fundamental. Filosofias africanas sem isso, são outras filosofias…não a nossa.

Espero que tenha ficado “escuro” que a “culpa” que nos anula, não existe na nossa cultura preta. Nós “somos muito” e “muita coisa”. Vai doer arrancar o “nada” que tentaram incutir. E “sim” precisaremos ser loucos para ir contra séculos de colonização mental. 

Só deixo escrito para “re-começo” de conversa que ser louca é ir contra. É se virar para dentro e redescobrir. 

Tenho pena deles quando descobrirmos quem somos….


Aurea Estela Costa Oliveira

Bacharel em História pela UNESA

Cursando Licenciatura em História pela UNESA

Cursando Pós Graduação em História e Cultura Afrodescendente na PUCRio

Bolsista Proatec Uerj desenvolvendo o Projeto Cartografia de lugares de memórias e narrativas da população afro-brasileira no Rio de janeiro.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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