Outra fera ferida

I

A filha

Uma das sensações mais intrigantes, quando uma mulher tem oportunidade de se aventurar pelo feminismo, é ver situações, descritas em livros, notícias, relatos, desenrolando-se em sua própria vida. Localizar nossas histórias pessoais dentro de uma estrutura, até então ignorada, é causa de indignação, mas também de certo desafogo.

Para contextualizar, devo dizer que fui criada por minha mãe, até os dez anos, quando esta faleceu, em 1997. A convivência com meu pai, até essa idade, não era muito frequente tampouco discutida. Encontrar meu pai duas vezes no ano e não ter com ele uma relação próxima não era uma questão ou algo a se notar, mas, ao contrário, era uma realidade bem resolvida, para meus genitores. A situação chegou, para mim, pronta, como normal, e eu, criança, também parecia não me importar com isso. Escutei muitas histórias sobre a ausência de meu pai. A maioria delas me contava sobre como minha mãe escolheu me ter independente dele. Bem, não fiz parte da conversa sobre como se daria a parentalidade em minha vida e a única coisa que posso afirmar, sobre isso, é que o acordo, feito por eles, só servia para eles.

O fato é que, durante a minha infância, vivemos eu e minha mãe. Entre mudanças de casas, de escolas, festas de aniversário, Tia Lourdes, novo marido, o nascimento de uma irmã e tudo que se dava em minha vida, eu tinha em minha mãe a manifestação viva da confiança, da segurança, do acolhimento.

Nesse sentido, a morte de minha mãe também deve ser minimamente detalhada, naquilo que me diz respeito. Em meados de 1995, minha mãe se descobriu HIV +. Em fevereiro de 1997, estava morta, em decorrência das complicações da AIDS. Para mim, na condição de criança e filha, minha mãe simplesmente sumiu. Aliás, foi sumindo diante de meus olhos; definhando em cima de uma cama, enquanto fazia contas para pagar dívidas. O modo como eu lidei com a situação, à época, esteve diretamente relacionado ao modo como ela mesma lidou. Afora uma irritação generalizada que se tornou recorrente em seu comportamento – e também em nossa relação –, o que eu presenciava, como verdade, era uma mulher falar sobre HIV de maneira otimista, dar palestras sobre o assunto em escolas, dar entrevistas, pensar em escrever um livro sobre infecção por HIV dentro do casamento… E me dizer, em nossos momentos a sós, que talvez ela morresse mesmo, mas que todo mundo morreria um dia e que a vida era isso. Ver minha mãe como sinônimo de força e de resiliência, em momento tão difícil, fez com que eu não me sentisse autorizada a sofrer por vê-la se esvaindo. Se ela, que estava doente, não exteriorizava fraquezas, por que eu, fisicamente saudável, exteriorizaria? Estava tudo bem, a vida era assim mesmo. E eu demorei dez anos para chorar sua morte, para chorar de saudades.

Com a morte de minha mãe, fui morar com uma tia e avó maternas. A relação com meu pai não mudou, continuando a ser esporádica e frouxa. Não me sentia à vontade na presença dele: era um misto de vergonha e admiração. A única coisa perceptível é que existia um abismo entre nós, o qual nem eu nem ele sentia obrigação de transpor. Na adolescência, frequentei a casa de meu pai mais assiduamente, por ser amiga de sua enteada. Convivíamos bem, disfarçando desconfortos.

Já a relação com minha tia, com quem fui morar aos dez anos, desenvolveu-se de modo complexo. De um lado, eu, uma criança/adolescente certamente difícil de lidar – silenciosamente traumatizada, insubmissa e até agressiva. De outro, uma mulher adulta com suas próprias questões. A ideia de que seríamos como mãe e filha, uma para outra, não se concretizou e isso nos trouxe muitas frustrações. A expressão máxima do desapontamento veio a partir de brigas cada vez mais frequentes e, em 2010, quando eu já tinha quase vinte e quatro anos, a relação se tornou insustentável. Talvez, tenha sido nessa época que, tardiamente, mas seguindo o calendário dos sentimentos e não dos fatos, eu tenha me dado conta de minha orfandade. De meu não-lugar em minhas famílias. De tudo que havia ido junto com minha mãe – inclusive a Bárbara que deixara de existir. Foi a primeira vez que expressei, explicitamente, a raiva que se espera que alguém expresse ao passar por situação tão dolorosa, como perder a mãe, no período de um ano e meio, aos dez anos. Principalmente quando essa mãe é o vínculo afetivo mais importante e atuante que se tem.

Em 2010, então, eu finalmente sofri. E, em meio a um desespero não elaborado, busquei o acolhimento de meu pai. Literalmente. Bati à porta da casa dele, após sair, aturdida, andando pela noite, de minha própria casa. Bati à porta da casa dele e ninguém abriu. Ninguém respondeu, apesar de haver pessoas em casa. Eu sabia que havia pessoas em casa. Naquela noite se confirmou a orfandade: minha mãe havia morrido e meu pai escolhia, todos os dias, não ser meu pai.

Foi no final de 2019 que, a partir de uma sequência de fatos e lembranças, pude ver como adjetivos e afirmações, pautados numa lógica machista, foram atribuídos a mim, no interior da frágil relação que eu tinha com meu pai.

II

A louca

Após bater à porta da casa de meu pai e não ser recebida, houve uma ligação telefônica entre nós, no dia seguinte. No calor de um diálogo desencontrado a respeito de relação atulhada de lacunas, a nossa, fui chamada de vagabunda. A única coisa que consegui indagar, a mim mesma, num sussurro decepcionado, foi: “mas o que isso tem a ver com a conversa, com a situação, com a história?” Nesse momento, percebi que o diálogo não se dava entre um pai e uma filha, mas entre um homem e uma mulher. As palavrinhas exatas, ainda usadas quando se quer ofender a dignidade de uma mulher, foram ditas: você é uma vagabunda. Pedi à minha avó, que estava perto, para que escutasse os disparates que meu pai dizia do outro lado da linha. A resposta de minha avó, um outro sussurro, agora suplicante, também me fizeram parar, por dentro, quando a escutei dizer: “deixe esse homem pra lá, minha filha”. Foi notável me dar conta que minha avó, sem perceber, me aconselhava sobre a relação com meu pai, como se falasse sobre uma relação com um namorado, com um homem qualquer. Fiz então uma associação, imediata e intuitiva, do tipo de tratamento que meu pai me oferecia e que outros homens, com quem me relacionara afetiva e sexualmente, também me ofereceram.

Exercendo, então, o meu papel de mulher, tentei, depois disso, repetidas vezes, culpar-me por escutar aquilo. Eu tentava entender o que me tornava uma vagabunda aos olhos de pessoa que conhecia de modo tão superficial. Será por quê eu fumava? Será por quê havia raspado a cabeça? Será por quê andava em meios onde drogas e sexo tendiam a ser tratados sem tabus? Será por quê eu mesma buscava me expressar a partir de afirmações e posicionamentos mais libertários? Será por quê eu falava alto? Será por quê expressava raiva sem fingir vergonha? A verdade é que nada disso fazia sentido para mim, mas, mesmo ciente da ausência de sentido, sei que foi nessa impiedosa autoanálise comportamental que me peguei depois da discussão.

Encontramo-nos pessoalmente, depois do episódio, num parque próximo ao local onde ambos morávamos. Lá, escutei meu pai dizer que não abrira a porta para mim, pois tinha medo que eu estivesse armada e fizesse alguma coisa contra ele e a família dele. Aquilo me soou um tanto ridículo. Eu, por acaso, tinha algum histórico de andar armada? Já tinha violentado algum dos familiares dele? Não. Será que ele, como pai e estando a par das reivindicações que eu bradava em função de minha história de vida, não era capaz de decifrar a raiva, tatuada em mim, como expressão de alguma outra coisa fora de uma violência natural à minha personalidade? Eu procurá-lo não poderia significar a busca por um elo, um vínculo? Minha aflição não era legítima? Naquela conversa, vi meu pai argumentar sobre como eu agi de forma insana e que, estando eu nervosa, aquele não era o melhor momento para conversarmos. Eu acompanhava os gestos de um homem equilibrado, lúcido, colocando diante de mim um espelho no qual eu deveria contemplar uma pessoa perturbada, sem razão.

Sabe-se que, em todos os tempos, mulheres foram, e são, chamadas de loucas, neuróticas, histéricas, como forma de deslegitimar qualquer manifestação de descontentamento com o que está posto, com o que lhes é oferecido. Mulheres que vociferam, independente de suas motivações, não merecem ser escutadas.

Ouvi também, no mesmo encontro, meu pai dizer que ele não conseguira se aproximar de mim, ao longo de toda uma vida, e estabelecer uma relação estreita comigo, porque eu sempre fui uma criança muito fechada e não dava espaço para que pudéssemos nos tornar íntimos. A essa altura, bailavam, em meus pensamentos, as seguintes palavras: “eu era apenas uma criança e essa responsabilidade não era minha.”

O que me fez, ao final desse encontro, seguir para casa em silêncio foi o fato de perceber que meu pai fora me encontrar não para resolver nossas questões de família, mas para garantir que eu, a louca, não tornasse a bater à porta de sua casa novamente, no meio da noite. A Bárbara aceita era a que disfarçava desconfortos.

A última vez que falei com meu pai, nesse 2010, foi noutra ligação telefônica que este fez para me desejar parabéns pelos vinte e quatro anos. Agradeci, em gesto cínico, e dei a relação por findada.

III

Te amo

Ainda em 2010, ano em que me formei professora de teatro, saí da casa onde morava, com minha tia, e fui consolidando minha independência financeira, como trabalhadora da Educação. Fase de novos amigos, lugares, hábitos e de reconstrução do amor-próprio, a partir do exercício da autonomia. Se um dia havia sido triste, não lembrava. Eu estava com todo gás.

Certa tarde, ao chegar na escola onde trabalhava, após o horário de almoço, fui avisada, pelo porteiro do prédio, que meu pai estivera por lá. “Meu pai? Deve ser outra Bárbara.” “Não, é Bárbara, a pró de teatro.” Era 2012 e dois anos haviam se passado desde a última vez em que nos falamos. Subi para a sala e, já com a aula em andamento, fui interrompida pelo mesmo funcionário, a dizer que meu pai havia retornado. “Não posso descer agora, estou em sala. Peça, por favor, para ele esperar.” Ele não esperou e tive a aula mais uma vez suspensa. Agora, o zelador vinha me entregar um livro, flores e um bilhete com a escrita de um poema, no qual se lia, entre os muitos versos, “eu te amo”. Não fingirei meiguice: aquilo não me sensibilizou. Segui para o final de meu expediente e confesso não lembrar agora se parei para pensar sobre o assunto nos dias que sucederam.

Apesar de admitir carregar a inflexibilidade como traço de caráter e isso me trazer muitas dúvidas sobre como eu poderia ter agido em determinadas situações, até hoje, não acredito que eu poderia ter tido reação acalorada diante do gesto romântico. Eu não queria, aliás. Dois anos antes, dei com a cara nas portas e, mais que flores ou rimas, o que me parecia caber naquele momento era um diálogo honesto e um pedido de desculpas, explícito, afinal o coração perdoa, mas não esquece à toa e eu não me esqueci.

Na mesma época, recebi uma solicitação de amizade no Facebook, acompanhada por mensagens nas quais se repetiam as declarações de amor. Era meu pai. Como quem não tem nada não tem nada a perder, fui direta ao questioná-lo se não era mais apropriado falarmos sobre o ocorrido dois anos antes, em vez de já irmos proseando sobre amor, nesse tom não parece, mas eu te amo. “Vamos conversar sobre quando fiquei, à noite, na porta de sua casa, sozinha?” Era minha dúvida. “Você continua a mesma, Bárbara.” E block. Na verdade, eu havia melhorado.

As precárias tentativas de interação aconteceram justo quando eu havia dado fim a um namoro, ao concluir, sem sequer uma sombra de dúvida, que “eu te amo” não bastava. Na relação de três anos, recentemente acabada, convivi com a masculinidade muito de perto e meu pai, àquela altura, desenhava-se para mim apenas como uma repetição.

IV

A amante

Entre 2012 e 2018, muitas águas rolaram e, por debaixo da ponte de uma vida bastante movimentada, passou também a corrente do desejo pelo autoconhecimento. Da continuação na análise à experiência com o chá ayahuasca, é interessante pontuar que foi a constelação familiar, método terapêutico hoje olhado por mim com bastante desconfiança e que se pauta na ideia de que toda família deve seguir uma hierarquia patriarcal rígida, que me fez acreditar que eu deveria buscar meu pai; que, como filha, este era o meu papel.

Findava 2018 quando entrei em contato com meu irmão paterno e lhe contei sobre o desejo de reencontrar nosso pai, apesar do tempo passado. Expressei minha insegurança em relação à possibilidade de ser tarde para a busca e também minha compreensão, se esse fosse o caso. Meu irmão, mais velho que eu, reagiu com grande alegria e sugeriu que fôssemos ao sítio onde nosso pai mora atualmente, a duas horas de Salvador.

“A casa está reformando”, foi a resposta de papai, como meu mano costuma carinhosamente chamar nosso genitor. Confesso que entendi. Entendi que ele não estava preparado para esse reencontro. Compreendi que não estava disposto a, oito anos depois, lidar com a situação. Assumi que a minha insistente indisponibilidade diante de flores, poema e até de imprevisto encontro ocorrido algumas semanas antes, quando me deparei com meu pai e esposa na casa de uma prima, havia balizado nossa relação. Meu irmão me contou que nosso pai me procuraria quando viesse a Salvador e eu lhe agradeci pela tentativa de ser ponte entre nós dois.

Durante o ano seguinte, recebi algumas ligações de meu pai. As conversas amenas, sobre assuntos genéricos, pareciam-me necessárias ao trilhar da convivência que eu tentava resgatar. Um passo de cada vez e “estou na praia”, “sinto falta da praia”, “estou viajando”, “nossa, como você viaja!”… Davam o tom de nossos diálogos. Eu não nutria ansiedade ou fazia grandes planos, mas já compreendia que o desejo era por, finalmente, conhecê-lo: saber a história de vida de um homem preto que fora adotado e outras narrativas não-imaginadas, além de contar a minha própria história, sob minha perspectiva. No horizonte da relação possível que eu vislumbrava, cabiam também almoços esporádicos e qualquer experimentação do amor, outrora posto em versos. Realçava-se, na paisagem, aquilo que costumo chamar de amizade.

Certa noite, quando conversávamos ao telefone, meu pai, que sempre vinha a Salvador com muita pressa e, por isso, impossibilitado de me encontrar, sugeriu ir em meu trabalho, visitar-me. No trabalho? Respondi que poderíamos esperar uma situação mais adequada, para que pudéssemos nos rever com calma. O modo resignado como eu lidava com a nossa quase-aproximação advinha também da compreensão de que poderíamos não chegar a lugar algum, que talvez não houvesse amizade possível para nós dois.

Contei a minha tia sobre ter recusado a visita no trabalho e ela, muito orgulhosa de mim, aconselhou-me a não aceitar essa relação de qualquer jeito e manifestou a suspeita de que a comunicação comigo pudesse estar se dando às escondidas. Déjà vu. Lembrei de minha avó, anos antes, orientando-me e me dei conta da ilegalidade, para meu pai, da relação que eu propunha. Não tinha muito mais o que fazer, a não ser estar disponível para a reconstrução de nosso vínculo. E eu estava.

Numa manhã de dezembro, pedalava, quando avistei meu pai e a esposa caminhando na orla. No mesmo dia, recebi ligação muito entusiasmada de meu genitor, falando do desejo de me encontrar e estreitar nossa relação, de uma vez por todas. Marcamos num restaurante, próximo de onde eu morava, e conversamos bastante sobre nossas histórias, nossos hábitos e interesses. Meu pai se colocou como responsável pelos desencontros que aconteceram no passado e eu achei aquilo bom, apesar de sugerir, a maior parte do tempo, que olhássemos para frente. Meu genitor fez questão também de pontuar que sua esposa estava ciente de nossa reunião. Havia eu finalmente deixado de ser a garrafa de bebida enrustida? Sem comentários. Ainda assim, voltei para casa sentindo alegria e acreditando que, naquele mar de faltas, surgiriam novas ondas.

A pandemia chegou e uma chamada de vídeo, na qual eu e a família de meu pai nos cumprimentamos, por meio da tela, foi o que de mais cordial aconteceu à nossa relação até agora. Foi como se eu estivesse sendo assumida. Conseguimos manter, por mais um ano, o de 2020, a comunicação virtual, mas confesso ter me desanimado com a ideia de convívio que se pauta em compartilhamento de vídeos engraçados ou inteligentes em aplicativo de mensagens.

Eu completo, neste agosto de 2021, trinta e cinco anos. Altos, baixos, idas e vindas escrevem as memórias da paternidade aqui explorada e, no interior de narrativa um tanto quanto previsível,  continuo acreditando que existem determinados elementos que devem ser trazidos pelo personagem de meu pai. A casa dele precisa sair da reforma, por exemplo, ou a história não anda. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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