– Mamãe! Mamãe!
– Que é minha filha?
“- Nós não somos nada nesta vida.”
(Lima Barreto- Claro dos Anjos)
O sol ainda não havia nascido e o relógio da cozinha dizia a Jovelita que era preciso se apressar, eram 4h e o café ainda não estava pronto. A velha preta demorava ao lembrar-se dos acontecimentos da noite passada. Enquanto colocava água no bule, repensava sua vida, sua dura e pobre vida.
Jovelita nascera na pequena cidade de Cachimbó, pequeno distrito de Inhamuré, o estado Quitanda. Nasceu numa daquelas tardes em que a chuva caiu forte e estruiu as casas que ficavam próximas ao córrego. A recém- nascida, logo depois do parto, foi para a UTI por causa de problemas no pulmão. TO hospital de municipal não possuía o aparelhamento necessário para esse tipo internação. Os médicos não sabiam o que fazer e uma transferência para outro hospital era inviável, pois além da forte chuva, o próximo hospital ficava a 300 quilômetros dali e a única coisa a se fazer era torcer por um milagre. A mãe de Jovelita, a Dona Gracinha, conhecida no vilarejo pelos doces de marmelada, Começou a rezar sem parar, entre as rezas uma pausa para enxugar as lágrimas. Pobre dona Gracinha, a vida havia judiado daquela preta analfabeta, daquela mulher que teria que cuidar de uma filha sozinha, mulher que sofria os piores açoites da vida, mulher de garra, cidadã invisível e agora mãe de uma menina doente.
As orações foram ouvidas e Jovelita iria para casa, a menina poderia brincar no chão de terra, poderia correr atrás das galinhas, poderia estudar e ser gente instruída na vida.
Não tenho informações de como foi a infância da rebenta.
“Às vezes a vida é tão dura que nos impede de sorrir, a vida é um negócio violento e muitas vezes se mostra sem sentido, o que dizer quando a vida leva embora todos os sonhos? Sonhos que moravam no coração, uma vida inteira de planejamentos e trabalho para num passe de magica tudo ir embora. Como sorrir? como viver com essas dores desgraçadas que tomam as vidas desses seres humanos que vivem nesse planeta chamado Terra? e quando essa dor machuca por causa da sua cor? por ser gorda, por não tem o português que a gramática normativa exige? e por causa disso ser chamada de inculta. Alguém me explica?”
Esses eram os seus pensamentos e começou a chorar ao lembrar-se de outras mulheres, que como ela, eram vitimas desses preconceitos assombrosos que tomam conta das grandes cidades do Brasil e do mundo. Lembrou-se das pobres mulheres que foram e são vitimas de estupro, do estupro físico, mental, daquele estupro que transcende qualquer noticia televisiva O estupro diário da mulher brasileira virou o carro chefe de muitos meios de comunicação.
Na noite anterior foi violentada dentro do ônibus, quando procurou se defender foi ofendida, “negra suja”, foi o que ouviu por um desses homens que só fazem peso na terra. Ninguém a defendeu, os passageiros estavam mais preocupados com suas tecnologias do que com o realismo humano. Sua única defesa foi seu punho cerrado acertando poeticamente o nariz do agressor que sangrou mais do que merecia.
Ela chorou bastante, desceu do ônibus, chegou em casa, pegou seu caderno e seu lápis e usou sua arma preferida para protestar, escreveu um poema.
A vida como não deveria ser
“A cor da pele importa, A religião também importa, A minha sexualidade importa mais ainda. A estética importa,
A Camila não pode sair de saia curta, A Paula não pode reclamar das piadas machistas no trabalho, A Vanessa não pode transar no primeiro encontro, “isso é coisa de puta”. Já a Alice, tem cuidar da casa sozinha.
São tantos “nãos”. A igualdade deveria ter um corpo de mulher e nos defender, A vida não deveria ser assim Mas, acho que seria humilhada também. Marias, Larissas, Pamelas, Gilseldas, Neuzas, Vivianes, Veras e Danielas, Advogadas, Professoras, Medicas e Faxineiras, Mães, Amigas, Namoradas e Esposas.
Somos negras, somos brancas, Somos africanas, somos japonesas, Somos aborígenes, cearenses e capixabas. Somos de carne e osso, somos mais que a costela de Adão.
Enquanto houver sangue derramado meus versos gritarão mais alto que a tua agressão. Enquanto houver sangue derramado meus versos gritarão mais alto que a tua agressão.
Salvem as mulheres!
Jovelita chegou atrasada ao trabalho, mesmo com os avisos do relógio da cozinha.
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