A violência de Estado contra as “classes torturáveis”

A experiência da violência de Estado por parte da classe média branca pode explicar a ampla rede de solidariedade ao caso do negro pobre da Rocinha, inexistente ou irrisória no cotidiano da violência policial contra as classes populares. Sem essa rede, a imprensa e o sistema de justiça poderiam ter reagido de modo diverso do habitual, como tem ocorrido?

Por Mateus Utzig*, no Brasil de Fato

Negros e pobres são vítimas habituais da tortura no Brasil. Possivelmente essa situação se agravou durante a ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985, quando houve maior institucionalização da prática. Entretanto, sua origem remonta ao tempo em que o Brasil ainda era uma colônia portuguesa e a prática violenta encontrava respaldo em instituições importantes como a tortura judicial e a escravidão. Mesmo após a redemocratização e a Constituição de 1988, a tortura contra negros e pobres persistiu de modo expressivo na sociedade brasileira.

Vários fatores podem ser elencados para explicar tal continuidade. Primeiramente, a tortura contra tais grupos sociais não costuma chamar a atenção do Poder Público e da sociedade, seja por mero descaso, seja por se desconfiar que tal violência seja legítima, concebendo-se que tais grupos sejam criminosos usuais que podem e devem ser reprimidos por meio dessa forma de violência.

Ademais, há imensa dificuldade para se produzir provas materiais, pois, via de regra, a vítima do crime de tortura de encontra sob custódia da instituição violadora de direitos (como a administração penitenciária e a polícia); e os institutos de perícia são subordinados, em quase todos os casos, às polícias judiciárias, frequentes torturadoras.

Por fim, a palavra de negros e pobres contra agentes do Estado tampouco é considerada para fins de comprovar a tortura, seja quando fala de violências diretamente sofridas, seja quando expressa o testemunho da dor infligida a outros.

Talvez o denominador que una os fatores elencados seja a suspeita de que negros e pobres seriam criminosos. Assim, constituiriam uma ameaça constante aos demais grupos sociais. Tendo em vista a hegemonia dos últimos, a suspeita contra os primeiros teria como consequência a flexibilização e eventual supressão de seus direitos civis mais básicos, como o direito à integridade física e o direito de acesso à justiça. Nesse sentido, negros e pobres compõem as “classes torturáveis”, pois a sua submissão à tortura seria vista como aceitável.

Em 14 de julho de 2013, Amarildo de Souza, um auxiliar de pedreiro residente na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, foi torturado pela polícia para que contasse o que sabia sobre o tráfico de drogas na região. Da tortura, seguiu-se a sua morte.

Diante desse quadro, o caso de Amarildo chama a atenção. O morador da Rocinha foi torturado pela polícia carioca. Era negro e pobre. Da tortura, resultou a morte. Segundo a polícia, ele teria apenas prestado alguns esclarecimentos numa unidade policial e, em seguida, teria deixado o local sem que houvesse sofrido qualquer violência. Em princípio, poderia se tratar de mais um dos inúmeros casos de tortura que restam esquecidos, sem repercussão na mídia e sem atenção por parte do sistema de justiça.

Dessa vez, entretanto, a história foi diferente. Logo após o desaparecimento de Amarildo, criou-se uma grande rede de solidariedade por todo o país, que encontrou sua síntese na frase “Cadê o Amarildo?”, reproduzida inúmeras vezes nas semanas que se seguiram. Sua família reclamou a sua ausência na TV e nas ruas, amparada por muitos manifestantes. Logo surgiram mais informações sobre o caso, apontando para a morte decorrente de tortura.

Hoje, em outubro de 2013, o caso é investigado com grande cobertura da imprensa. Muitos policiais suspeitos de o terem violentado já foram afastados e presos. O caso Amarildo tornou-se um símbolo contundente do quanto a polícia do Rio de Janeiro viola direitos dos cidadãos, seja no asfalto das manifestações políticas, seja no morro das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).

É difícil determinar os fatores que podem ter feito a diferença no caso Amarildo. Mas parece igualmente difícil compreendermos o desenrolar dos acontecimentos sem considerarmos os protestos de junho. Na ocasião, muitas pessoas foram às ruas se manifestar em nome de bandeiras diversas. Havia desde demandas mais concretas por mobilidade urbana e reforma política até insatisfações mais generalizadas, como contra a corrupção.

Os manifestantes eram, sobretudo, jovens universitários de classe média. Foram reprimidos violentamente pela polícia, o que causou comoção em amplos setores sociais e, inclusive, o crescimento das ondas contestatórias.

Assim, a experiência da violência de Estado por parte da classe média branca pode explicar a ampla rede de solidariedade ao caso do negro pobre da Rocinha, inexistente ou irrisória no cotidiano da violência policial contra as classes populares. Sem essa rede, a imprensa e o sistema de justiça poderiam ter reagido de modo diverso do habitual, como tem ocorrido? Dificilmente. Ao que parece, a violência de Estado, em geral, e a tortura, em particular, mobilizam a imprensa e o Poder Público apenas quando a classe média branca é vitimada.

Em parte, isso ocorreu na ditadura e marcou a redemocratização e a Constituinte de 1987. Uma vez que foram garantidos novamente os direitos civis desse grupo social, a preocupação com a tortura hibernou por um longo período, até a edição da Lei Contra a Tortura de 1997. Nesse período, negros e pobres continuaram a ser torturados de modo amplo e sistemático. Afinal, a preocupação com esses grupos parece ser episódica: só há quando a classe média branca é incluída no escopo de ação da repressão estatal.

*Mateus Utzig é advogado e mestrando em Direito na Universidade de Brasília.

Fonte: Vermelho

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