No artigo “Redução de danos” (AOL Notícias), Renato Janine aborda a questão do aborto, inscrevendo a sua discussão no âmbito das políticas de redução de danos. Nele, Janine sintetiza as idéias que deveriam nortear o debate sobre o aborto contemporaneamente, na medida em que nas sociedades democráticas se impõe o respeito às diferenças de crenças, opiniões e valores – o que complexifica ou impossibilita a construção de consensos morais.
Por Sueli Carneiro, do Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião
Para Janine, “o que importa é que se renuncia à pretensão de impor plenamente determinados valores morais, e em vez disso se procura apenas diminuir o desastre”. Dessa visão decorre a defesa de uma política de redução de danos; uma concepção baseada na evidência de que certas práticas não são susceptíveis de serem evitadas ou contidas pela mera repressão ou punição legal.
A ilegalidade do aborto bem a demonstra, posto que, segundo estimativas oficiais, em nosso país, a cada nascimento corresponde um aborto. Portanto, pela extensão que essa prática tem no Brasil, a sua ilegalidade só produz efeitos sobre as condições em que ela é realizada, resultando apenas em abortos seguros ou inseguros, a depender das condições socioeconômicas das mulheres.
O que significa que, para as negras e as pobres em geral, restam seqüelas definitivas ou a morte, as quais o Estado brasileiro assiste de forma indiferente: cruzando os braços. Tal postura precisa mudar, em nome da democracia e da justiça social, como têm propalado as Jornadas
Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro: “Aborto: as mulheres decidem, a sociedade respeita, o Estado garante”.
Um dispositivo legal criado para normatizar as condutas humanas, fundado em concepções idealistas ou fundamentalistas descoladas das condições objetivas que determinam as escolhas das pessoas ou indiferente à complexidade de fatores subjetivos e emocionais que essas escolhas envolvem, coopera para com o surgimento de práticas ilegais num determinado campo das relações sociais. Traz, quase sempre, como uma espécie de efeito colateral, a formação de um meio delinqüente, através do qual se realizam, na dimensão marginal, a liberdade de consciência ultrajada, o direito negado ou as condições sociais inexistentes para o cumprimento daquela previsão legal.
Assim, a criminalização da prática do aborto cria e reproduz, de um lado, a indústria rendosa de aborto ilegal, sustentada pelas mulheres que o podem realizar em condições seguras nas clínicas especializadas e, de outro, por aquelas que não dispõem dessas mesmas condições e assim mesmo o fazem e o pagam, segundo suas possibilidades, expondo-se às seqüelas e riscos de morte que o procedimento pode produzir quando praticado em condições inseguras.
Nesse contexto em que o debate sobre o aborto processase, eivado de hipocrisia e indiferença em relação às conseqüências da criminalização do aborto sobre a saúde e a mortalidade das mulheres, faz-se necessário saudar a corajosa decisão da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) de inscrever, no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, a proposta de revisão da legislação punitiva sobre o aborto. Em primeiro lugar, porque tal disposição governamental expressa respeito da parte do Estado aos direitos reprodutivos conquistados pelas mulheres, entre os quais se inscreve o direito à interrupção a uma gravidez indesejada – um direito que vem sendo historicamente negado, o que põe em questão o alcance de nossas liberdades democráticas.
Em segundo lugar, trata-se também do reconhecimento por parte do Estado da extensão da prática do aborto em nossa sociedade, das condições sociais que estão implicadas no aborto inseguro, do que ele produz de doenças e mortes evitáveis, que demonstram que o tratamento meramente penal do problema vem se constituindo em política de avestruz, contribuindo para a manutenção dos fatores de risco que envolvem o aborto inseguro e que resultam em punição adicional para as mulheres que a ele recorrem, além daquelas previstas no plano legal.
E, em terceiro lugar, demonstra vontade política também para enfrentar essa lógica perversa que transforma a vulnerabilidade das mulheres diante da necessidade de fazer um aborto, pelos fatores de risco aí envolvidos, em negócios altamente rentáveis às custas da saúde física e mental das mulheres. E, por fim, significa a reiteração do caráter laico do Estado, pois abrir a discussão sobre a legislação proibitiva do aborto, com o firme propósito de superá-la,significa, entre outras coisas, a recusa à generalização para o conjunto das mulheres de concepções ditadas por particularismos religiosos que definem condutas, sobretudo no que diz respeito, entre outros temas, à concepção e aos seus direitos reprodutivos – valores que devem ser legitimamente aceitos pelas mulheres que deles compartilham ,deixando as outras, como convêm nas democracias, livres para prestarem contas apenas às suas consciências.