Ana Hikari, 1ª protagonista asiática da TV: ‘Passei a vida reduzida a japa’

Em décadas de TV Globo, apenas uma atriz de ascendência asiática ocupou o posto de protagonista de uma novela: Ana Hikari, em “Malhação: Viva a Diferença”. A temporada que foi ao ar em 2017 é celebrada até hoje por girar em torno de cinco protagonistas mulheres, dentre elas duas não brancas e uma LGBTQ+.

O sucesso foi tanto que a trama, criada por Cao Hamburger (o mesmo de “Castelo Rá-Tim-Bum”) venceu o Emmy Internacional e ganhou um spin-off: “As Five”, série de 10 capítulos que mostra as mesmas protagonistas, mas no início da vida adulta, na faixa dos 24 anos — dois a menos que Ana atualmente.

À Universa, a atriz reflete sobre a importância de a televisão assumir compromisso com questões de gênero, raça e classe — assuntos que ela busca estudar mais a cada dia. Foi assim que se descobriu amarela: lendo sobre feminismo negro.

Agora, Ana quer uma segunda protagonista, mas quer, também, que sua presença na TV inspire outras meninas como ela: “Quando fui aprovada para “Malhação”, não entendi que seria protagonista, porque nem imaginei a possibilidade de uma asiática ocupar esse lugar. Afinal, se você não se vê representada, tem a sensação que não tem o direito de estar lá”

UNIVERSA: Você teve dois anos para envelhecer a personagem em sete anos. Como foi esse processo? Quais foram os desafios de se manter a personagem, mas agora mais madura?

Ana Hikari: Foi um processo muito maluco porque, dos 17, que é a idade em que acaba “Malhação”, para os 24, onde começa “As Five”, a gente muda muito. Eu pelo menos mudei. E são personagens que o público conhece muito bem, sabe os trejeitos, sabe o que pensa, era preciso manter a essência, mas entregar um amadurecimento. O corpo muda, a postura, o jeito de falar, de andar, de olhar. Tudo muda. Durante o processo de preparação, durante um mês, fizemos o exercício de imaginar o que teria acontecido com essas personagens depois de sete anos. E, num segundo momento, nos reencontramos com elas, como se fossem velhas amigas.

A Tina de “As Five” está mais próxima da sua faixa etária do que a Tina de “Malhação”. Em quais pontos você se identifica com a personagem e quais são as maiores diferenças entre vocês?

O que eu mais me identifico é a paixão pela arte: ela com a música, eu com a atuação, o teatro, a interpretação. Tanto eu quanto a Tina batalhamos muito para viver dessa arte, coisa que é muito difícil no Brasil, um país que não tem incentivo nenhum à cultura. É um sonho difícil de correr atrás.

Por outro lado, ela tem atitudes muito impulsivas. Precisa fazer mais terapia. Entre as cinco protagonistas há diferenças muito grandes, especialmente de classe, mas a Tina não tem essa consciência. Isso fica muito claro em alguns diálogos. Apesar de eu ter nascido com uma série de privilégios — estudei em colégio particular — meus pais nunca foram ricos e eu sempre tive consciência desse privilégio.

A série traz temas que Malhação não poderia abordar da mesma forma, como o uso de drogas ilícitas, no caso da Tina, mas também sexo, racismo, violência física. De que forma essa liberdade que vocês ganharam em “As Five” acrescenta à obra?

São temas importantes de serem abordados, assuntos que existem e ignorar não vai fazer com que desapareçam. Mas uma coisa muito legal que o Cao [Hamburger, criador da série] fez é colocar drogas ilícitas num contexto mais naturalizado [no episódio 5, os personagens usam drogas recreativas ilícitas durante uma festa], porque é o que acontece, e as drogas lícitas são mais problematizadas [no episódio 3, outra personagem tem uma overdose de medicamentos]. Quantas pessoas não se automedicam de forma irresponsável? A série questiona a forma como as pessoas enxergam as drogas ilícitas de forma demonizada pelo simples fato de serem ilícitas. Não acho que seja apologia às drogas, mas uma tentativa de não invisibilizar.

Ainda sobre drogas, no episódio 5, um personagem branco, de classe média, é quem leva a droga para a festa, enquanto o Anderson [Juan Paiva, par romântico de Ana na série], que é negro, é parado pela segurança de um prédio em Higienópolis [bairro nobre de São Paulo] sem ter droga nenhuma. Então a droga entra na série também para problematizar outras questões que não só o uso.

A série é um retrato da geração Z vivendo o início da vida adulta, e os dilemas pessoais e profissionais que essa fase implica. Acredita que essa geração — que é a sua e a minha também — é mais engajada que as anteriores?

Eu acho que é uma geração que tem muito potencial, e que está começando a entender que as mobilizações fazem sentido e fazem diferença. Isso é muito importante: entender que quando a gente se mobiliza, se posiciona, causa impacto no mundo. Ao mesmo tempo, a gente consome muita informação genérica e superficial, fica preso nas redes sociais, em inércia.

É uma contradição. Ao mesmo tempo que a gente tem literalmente na palma da mão todo o potencial para revolucionar, a gente tá preso nesse universo, sai pouco do lugar.

A Tina mostra muito isso: ela tem uma boa plataforma [na série, a personagem é DJ e influenciadora digital], tem um ativismo — entre aspas, porque para mim ativistas são pessoas que estão construindo essa luta na rua, e não é o caso — mas mostra uma hipocrisia. Na tela fala uma coisa, na vida real faz outra. É como a galera que publicou um quadrado preto no Instagram em 2020, no #BlackOutTuesday [ação digital contra o racismo], mas a gente não vê tendo atitudes antirracistas fora da internet, no resto do ano. A mudança precisa ocorrer nas atitudes diárias.

Na série, Tina se revolta contra um homem que se refere a ela como “japa” e joga uma garrafa nele. O racismo contra pessoas amarelas é também uma pauta sua. De que formas esse racismo te atravessou ao longo da vida?

O racismo sempre se apresentou para mim, mas eu não tinha vocabulário para entender que a maneira que me tratavam, diferente das outras meninas, era por uma questão de raça. Meu pai é negro e, no caso dele, sempre percebi um tratamento diferente. Mas a discriminação racial contra mim, por ser amarela, era menos evidente.

Só entendi que não era branca quando li sobre feminismo negro, porque conheci o termo “recorte de raça”.

Passei a vida toda sendo reduzida a “japa”. As pessoas achavam que eu seria a mais quieta, a mais comportada, e quando fugia deste estereótipo, era chamada de “japonesa do Paraguay” — o que é duplamente preconceituoso. Na adolescência, fui muito objetificada. No imaginário machista, mulheres asiáticas são submissas, mas na cama satisfazem todos os desejos. Isso está muito ligado ao consumo de pornografia.

Você foi a primeira (e até agora única) protagonista asiática de “Malhação”, em 25 anos de série. O racismo contra pessoas amarelas se impõe no audiovisual? E de que forma isso atravessou a sua vida profissional?

É complicado. Quando eu era chamada para um teste, sempre estava descrita a etnia. “Personagem tal, 25 anos, japonesa”. Ou “asiática”. Por muito tempo, só fiz testes em que a raça estava especificada, mas quando era uma bailarina, por exemplo, eu nem era chamada. Felizmente, o mercado audiovisual está começando a questionar isso, afinal, as pessoas querem ver personagens complexos e com histórias interessantes independente da etnia.

Chamar alguém de ‘japa’ é ignorar o nome da pessoa e é coloca-la dentro de um conceito limitante. Além disso, é ignorar que existem outras identidades asiáticas amarelas.

Olha que curioso: quando fui aprovada para “Malhação”, não entendi muito bem que seria uma das protagonistas. Acho que nem imaginei a possibilidade ter uma protagonista asiática. Nunca teve, por que teria naquele momento? Na Globo, eu fui a primeira protagonista asiática entre todas as novelas. São 50 anos de emissora. É algo para refletir.

E qual é o impacto da sua presença na TV para meninas que, como você, não imaginavam ver uma protagonista asiática na TV?

Quando você não se vê representada, tem a sensação que não existe, que não tem o direito de estar lá. Eu passei por isso durante a adolescência. Não me via nos lugares e, por isso, não me sentia bonita. Pensava: “Eu não sou parecida com essa pessoa branca, loira, de olhos claros que está na TV. Então sou feia”. Quando “Malhação” entrou no ar, entendi o impacto. E, quando a gente fala de representatividade, não basta ter ali a imagem de uma mulher asiática. Ela precisa cumprir um papel interessante, ter uma boa história e vontades próprias, como é o caso da Tina e também da minha próxima novela [Ana Hikari será Vanda em “Quanto Mais Vida Melhor”. A obra está na fila da faixa das 19h da Globo].

Além de apresentar duas protagonistas que não são brancas, a trama foi muito celebrada por ter um casal lésbico, com direito a beijo, idas e vindas e reflexões sobre sexualidade. Enquanto parte da comunidade LGBT, se sentiu representada?

Eu era muito entusiasta desse casal [Lica e Samantha, interpretadas por Giovanna Grigio e Manoela Aliperti]. Primeiro porque eu achava um casal muito lindo e muito bem escrito. Segundo porque eu tinha noção do quanto aquilo faria diferença na vida das garotas que estavam assistindo. Se eu tivesse assistido à história desse casal quando eu estava na frente da televisão, na adolescência, talvez fosse mais fácil.

Nossa geração cresceu numa sociedade em que o correto é menina beijar menino e menino beijar menina. Quando você cresce com outras referências, entende que está tudo bem se seus sentimentos fogem disso. E eu ficava muito feliz em saber que estávamos entregando essa possibilidade para as meninas que estavam do outro lado da TV.

No ano passado, você revelou ter vivido um relacionamento abusivo e violento. Contou que depois de ser agredida por seu então namorado, foi chamada de “mulher de bandido” por uma professora. Acredita que as novelas, enquanto produções de grande audiência, são ferramentas que podem ajudar a combater episódios como este no futuro? De que forma?

Com certeza. Aquela frase da colher tem que cair em desuso. As pessoas acreditam que o que acontece entre um casal não é de responsabilidade social, mas eu discordo. A sociedade tem que ter compromisso com questões de gênero. O audiovisual, as novelas, o cinema?

Todas as mídias precisam assumir um compromisso com questões de gênero, raça e classe. Quanto mais um tema é debatido, mais as pessoas vão entendendo que aquilo está errado.

Naquela situação, eu sentia que não tinha perspectiva nenhuma depois da agressão. Essa é a importância de ver histórias desse tipo sendo contadas. Mostrar que há saída.

Você não só encontrou a saída, como construiu uma carreira sólida, com direito a reconhecimento da Forbes, eleita uma das promessas nas artes dramáticas na lista 30 Under 30, junto com atores como Jessica Ellen e Humberto Carrão. Que significado tem esse reconhecimento neste momento da sua carreira?

Eu fiquei muito chocada, é uma lista que sempre tem pessoas que eu admiro muito. Tenho dificuldade de reconhecer meu trabalho, dar valor ao que eu faço. Então senti como se o mundo estivesse jogando na minha cara: “Olha, Ana, você está aí se criticando, mas tem valor. Vá em frente”. Tive vontade de desistir em muitos momentos. Quem quer trabalha com arte passa por isso o tempo todo.

Durante essa agressão [que sofreu do ex-namorado], uma das coisas que o cara me falou é que eu era uma péssima atriz. Ele me batia e, ao mesmo tempo, dizia que eu nunca ia conquistar nada na vida. Hoje vejo que peguei aquelas palavras e joguei no lixo.

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