Tenho escrito alguns artigos sobre racismo e, em todos, invariavelmente, apareceu quem tentava fugir do assunto para falar sobre cotas. São assuntos relacionados, eu sei, mas também complexos por si só. Cotas não seriam necessárias se não houvesse racismo. Mas estão aí, os dois, e talvez agora, depois da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, nos dias 25/04/2012 e 26/04/2012, reafirmando a constitucionalidade das cotas, possamos começar a conversar de verdade sobre eles. Porque talvez a velha mídia pare de fazer a campanha suja que vem fazendo e nos deixe, finalmente, tratar desses assuntos e das vidas das pessoas por eles modificadas (brancos, negros, cotistas, não-cotistas etc…) com a honestidade e o respeito que todos merecem. É agora que começa o trabalho, e é bom que a gente tente separar, principalmente, o que é fato do que foi campanha, o que é verdade histórica do que foi mero exercício de futurologia. Será um longo caminho que vamos ter que aprender a trilhar juntos, independente de sermos contra ou a favor. Somos sujeitos históricos: o que fizemos ontem, como povo e como indivíduos, reflete na realidade que temos hoje, assim como o que fazemos hoje vai determinar com o que teremos que conviver amanhã. A História não nos deixa viver impunes.
Quando mudei de opinião sobre as cotas, em 2006, aprendi a duvidar. Durante um bom tempo ainda me vi balançada entre argumentos, mas todos eles perderam a força quando vi esse http://www.bbc.co.uk/go/wsstory/int/rhn/portuguese/-/portuguese/news/avfile/2007/05/&;ws_storyid=070516_dnaseujorge_console&bbcws=2″ target=”_blank”>video, de 2007. Nele, Seu Jorge conta que sua filhinha mestiça, de 6 anos, era segregada pelas coleguinhas na escola de balé. Isso não tem nada a ver com preconceito de classe, é racismo puro. Racismo entre crianças de 6 anos. As coleguinhas a segregaram porque ela era diferente, e a única diferença visível estava na cor. “Essa menina/ tão pequenina/ quer ser bailarina”, diz o poema de Cecília Meireles, “Mas depois esquece todas as danças/ e também quer dormir como as outras crianças”. Alguém tem alguma ilusão de que a filha de Seu Jorge, depois de uma brutalidade dessa, conseguirá dormir como as outras crianças de sua escola de balé? Se a gente continuar querendo acreditar que não é problema nosso, que todos nós que vivemos nos tempos de hoje não temos nada a ver com os resquícios perenes e dolorosos da escravidão, isso vai continuar acontecendo. Crianças de seis anos continuarão sendo vítimas de racismo. Brancas, mestiças ou negras. Porque o racismo que marca sem dó a criança estigmatizada, tem na outra ponta aquela que vai crescer presa a esse sentimento nefasto, mesmo que no futuro aprenda que ele é reprimível e condenável. Esse livro de Eliane Cavalleiro nos mostra que racismo introjetado na infância não desaparece sozinho. Para combatê-lo, e todos nós estamos sujeitos a ele, é necessário um exercício contínuo e nem sempre agradável de observação e conhecimento de nossas palavras e reações e, sobretudo, do ambiente à nossa volta. Alguém tem alguma dúvida de que, se os pais dessas crianças que se recusaram a dar a mão para a filhinha de Seu Jorge tivessem amigos, vizinhos e colegas de trabalho negros, com quem convivessem em situação de igualdade, essa situação poderia ser diferente? Provavelmente ninguém as instruiu a não dar a mão. Elas observaram e concluíram: aqui há uma diferença, e ela envolve cor. Para ajudar a combater o racismo e o preconceito de cor, as ações devem ser pontuais e específicas, como as cotas raciais. Que não são, de maneira alguma, incompatíveis com as cotas sociais, específicas para ajudar a combater a desigualdade econômica. Preconceito de classe e preconceito de cor, embora muitas vezes se sobreponham, não são a mesma coisa, e exigem soluções diferentes. São assuntos sérios que exigem, sobretudo, que sejam deixados à margem de disputas políticas e de poder. Há racismo e luta anti-racismo na direita e na esquerda. Não é bandeira de ninguém, embora ainda sejam tão poucos os dispostos a carregá-la. Há racismo e luta antirracista na direita e na esquerda (recomendo a leitura do livro O Marxismo e a questão racial – Karl Marx e Friedrich Engels frente ao racismo e à escravidão). Não é bandeira de ninguém e é de todo mundo, e tenho esperança de que um dia seremos muitos a carregá-la.
Eu sou otimista; e ficarei ainda mais quando mais pessoas começarem a duvidar do que ouviram ou leram até aqui (inclusive nesse artigo), procurar informações confiáveis e comprováveis, se dispor a ouvir quem está há mais tempo na luta e tirar suas próprias conclusões. Esse vai ser um longo artigo porque, desde que comecei a fazer tudo que listei aí acima, e esse também é um processo contínuo, tenho me horrorizado com o tipo de “informação” e de ações sobre as quais boa parte da mídia brasileira tenta levar seus leitores a tomar posição. Não vou mentir dizendo que não quero fazer as pessoas mudarem de opinião, porque no fundo, é o que queria que acontecesse. Mas acima de tudo queria que tomassem os exemplos abaixo como ponto de partida para esse tão bom e necessário exercício da dúvida. Seria bom que cada pessoa que é contra as cotas raciais, disposta ou não a mudar de ideia, não aceitasse como verdade absoluta a opinião de nossos “formadores de opinião”, checasse o que eles dizem e escrevem, e observasse se o que resta de concreto nisso tudo ainda oferece base suficiente para sustentar uma posição entravadora do diálogo e das lutas anti-raciais no país. Não é nos dividindo entre bons e maus, petralhas e esquerdistas, cegos e aqueles que veem a luz, racistas e não-racistas etc… que vamos resolver o problema do racismo. É nos unindo na análise de situações concretas, na resolução de problemas concretos e, sobretudo, na tentativa de reestabelecimento e recuperação de um mínimo possível de verdade histórica.
Esse não será um artigo desapaixonado, pois me é caro. É a minha contribuição, que junto à de vários ativistas e simpatizantes dos movimentos negros, passados, presentes e futuros, para começarmos a estabelecer as bases sobre as quais as conversas sobre racismo e correlatos devem se firmar. E escrevo porque acredito que essa base está muito mais próxima do que, na média, a sociedade brasileira realmente almeja, do que o baixíssimo nível no qual parte da grande mídia quer fixá-la. Ali Kamel, Yvonne Maggie, Demétrio Magnoli, e Demóstenes Torres, para citar os que ocupam mais espaço, mais os editorialistas de O Globo, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, ao nos falar do ódio que as cotas vão despertar no povo brasileiro, sabem do que falam. Se eu também me informasse apenas através de seus textos, estaria odiando negros, esquerdistas, lulo-petistas, ongs patrocinadas por fundações norte-americanas, jornalistas delinquentes e todo tipo de gente irresponsável que macaqueia a América do Norte num momento em que os americanos percebem a grande burrada que fizeram, e não se tocam que vão deflagar uma sangrenta guerra civil que vai primeiro segregar e depois dizimar boa parte da população, como aconteceu com a Índia, Ruanda e África do Sul, já tendo começado pelo genocídio de todos os mestiços, não poupando também os índios que forjaram suas identidades nos últimos anos, e está preparando um enorme exército de filhos de Pelé e Joaquim Barbosa para tomar todas as vagas dos 19 milhões de brancos pobres. Esse bando de inconsequentes, unidos em torno do Ministério da Segregação Racial, defende cotas para negros que vão se humilhar na condição de cotistas porque não estudam o suficiente para passar no mais meritocrático de todos os sistemas de avaliação, o vestibular, que foi substituído por um tribunal racial que promove o apartheid que separa os brancos dos negros que, uma vez na universidade, vão fazer a qualidade do ensino despencar, e apelam para mentiras que conseguem convencer ministros que não conhecem nada da nossa história e se deixam enganar por ideologias infundadas que pregam que, no Brasil, – que nunca discriminou negros, que nunca teve leis segregacionistas, que sempre tratou seus escravos com a maior dignidade e doçura, que foi usado pela África, que resolveu exportar pra cá seu sistema de escravidão, onde todas as índias e escravas tiveram relações consensuais e amorosas com seus senhores, provando que somos um exemplo de democracia racial e ser seguido, que nunca teve cotas para brancos e que é só um pouquinho racista, de vez em quando, numa instituição ou outra – o racismo prejudica os negros. Esse é o cenário quase completo no qual a mídia quer nos fazer acreditar – e temer, claro, porque sabe do poder intimidador do medo – no intuito de defender os interesses do “povo”.
Só a hipocrisia pode justificar essa cruzada, impendido-os de dizer que, na verdade, defendem ideologias e interesses próprios pois, segundo pesquisa do Data Senado divulgada em julho/2011, assim pensa o “povo” brasileiro: 66% manifestaram-se a favor das cotas para negros; 73% favoráveis às cotas para indígenas; 78% apoiaram cotas para estudantes que cursaram a rede pública; 83% defenderam cotas para estudantes de baixa renda e 85% aprovaram cotas reservadas para pessoas com deficiência. É interessante analisar que, quanto mais “povo”, maior a aprovação às cotas; e que, em relação à cota para negros, por exemplo, a rejeição mais significativa vem de homens com 20 a 29 anos, curso superior e renda acima de 10 salários mínimos. É esse o perfil de quem mais rejeita cotas. É rico, pelo padrões nacionais; deve ser branco, pelo nível educacional; e são os interesses dele, longe de serem representativos dos interesses do povo brasileiro, que os nossos jornalistas e editorialistas defendem, querendo nos fazer acreditar que falam pelo povo e com o povo. Não falam. E foi isso também que, no histórico dia 25/04/2011, o Supremo Tribunal Federal teve a sensibilidade de perceber.
Eu tenho um sonho – Há anos venho prestando atenção nos absurdos que os formadores de opinião são capazes de dizer contra as cotas. Apenas para que vocês tenham uma ideia, vou pegar o texto publicado por Yvonne Maggie em sua coluna semanal no portal de notícias da Globo, G1, no dia 23/04/2012, “A constitucionalidade das cotas raciais no Brasil”. Um dia antes da votação no STF, Yvonne Maggie escreveu:
“Em Thirteen ways of looking at a black man, de Henry Louis Gates Junior, professor de Harvard, há uma história reveladora do que se passou depois da lei dos direitos. Neste livro, Harry Belafonte conta que alguns anos depois de 1964 fora convidado para fazer um filme. O produtor, muito animado, lhe dissera: “Harry, será maravilhoso, vamos fazer um filme dirigido e estrelado por negros, produzido por negros, com música feita por negros e vai ser belíssimo”. Ao que o ator, nervoso, respondeu: “Não quero fazer parte disso, passei tantos anos lutando para sair do gueto, não serei eu a me enfiar de novo nele”. Gates conta que durante a entrevista, após esta declaração de Harry, seguiu-se um silêncio constrangedor, só quebrado com uma sonora gargalhada do entrevistado e a seguinte frase: “Eu não aceitei a armadilha, mas é claro que Sidney Poitier aceitou e ficou rico estrelando todos aqueles filmes”.
Por acaso temos o livro em casa e eu resolvi conferir. Já escaldada nesse tipo de manipulação, poucas vezes estive errada em duvidar, principalmente quando algum negro (no caso, dois) é pego para servir de boneco de marionete. Pois bem, a estória contada por Yvonne Maggie não existe. Há dois fragmentos que ela parece ter juntado, enfeitado com silêncio constrangedor, gargalhada sonora, uma data hipotética, umas frases de efeito inventadas e legitimadas por aspas, além de distorcidas para ilustrar o próprio ponto de vista. Essa estratégia de eleger um “negro boneco de marionete”, selecionar parte ou sentido de seu discurso ou ato, e reinterpretá-lo de modo a que ele sirva de exemplo a ser seguido pelos “menos esclarecidos”, como se ele já tivesse passado por isso e soubesse mais e melhor, é bastante comum, como já apontei aqui. Antes de mostrar o que realmente escreveu o professor Henry Louis Gates Jr. que, junto com Harry Belafonte, é figura importante na luta dos direitos dos negros norte-americanos, acho importante contextualizar algumas coisas.
Em 1953, Belafonte se mudou para a vizinhança branca de Elmhurts, no Queens. Magurite, que era sua esposa na época, nos conta: “Logo que nos mudamos, de repente vimos uma quantidade de placas de “Vende-se” aparecendo”. Um dia depois, Adrienne, quatro anos, negra, filha de Magurite com Belafonte, dizia para a mãe: “Mãe, temos que nos mudar! Há negros se mudando para a vizinhança!”. (págs. 161 e 162). Na época Belafonte já era bastante conhecido como ator e cantor, e muita gente analisa que isso se dava, não só mas também, porque ele não era preto-preto. Apesar da pele mais clara, a ele também não era permitido usar as dependências dos hotéis nos quais se apresentava, tendo sempre que dormir em pensões para negros nos arredores das cidades. Em 1957, Belafonte atuou em Island in the sun, formando par romântico com uma atriz branca, Joan Fontaine. O filme, e principalmente o beijo entre os dois, casou escândalo nos EUA, fazendo com que fosse introduzida legislação no estado da Carolina do Sul, multando as salas de cinema que exibissem o filme. Nessa mesma época foi escândalo também, entre as comunidades negras e brancas, o fato de Belafonte, então, ter se separado de sua primeira esposa Margurite, negra, e ter se casado com uma mulher branca, Julie Robinson. É aqui que acontece a primeira história que inspirou a adaptação de Yvonne Maggie, contada nas páginas 169 e 170:
“Belafonte se lembra que mais ou menos naquela época Otto Preminger queria escalá-lo para uma versão filmada de Porgy and Bess. Ele achou o script racialmente ofensivo – um romance entre um drogado e uma puta, não era? “Um monte de gente da comunidade negra disse não. Quem quebrou a corrente foi Sidney, que aceitou fazê-lo.” Na sequência, o filme não fez muito sucesso quando saiu, em 1960, e foi severamente criticado pela imprensa negra. Mas um padrão estava estabelecido. O desencantamento de Belafonte com Hollywood cresceu. Na década seguinte, seu amigo Poitier fez dezessete grandes filmes; Belafonte não fez nem um.
Pra começar, os roteiros que lhe era oferecidos o horrorizavam. Ele menciona uma série de filmes que recusou. “Um deles era o filme chamado To Sir with Love.”
“Você o recusou?” Eu estou chocado.
“Ah, merda, sim. E também Lilies of the Field“.
Esse, claro, foi o filme de 1963 que firmou Poitier coma uma presença significante no cinema pós-guerra: nobre, abnegado, bondoso. Quando o vi, aos treze anos, caí no choro. Era o perfeito veículo dos movimentos dos direitos civis no momento. Sua mensagem para a América branca era praticamente telegrafada: Nós somos um povo amigável e generoso, nós somos bons cidadãos.
Belafonte tinha outra opinião sobre isso. “Quando li Lilies of the Field, fiquei furioso. Você tem essas freiras fugindo do comunismo, e do nada há esse negro que se coloca por inteiro ao serviço delas, sem dizer nada, e sem fazer nada exceto ser comandado por essas feiras nazistas? Ele não beijou ninguém, ele não tocou ninguém, ele não tinha cultura, ele não tinha história, ele não tinha família, ele não tinha nada. Eu disse, “Não, eu não quero encenar filmes assim”. O que aconteceu foi que Sidney Poitier aceitou – e ganhou o Oscar”.
Sobre Poitier, que sempre foi e continua sendo seu amigo, Belafonte diz: “Sidney foi sempre mais maleável, mais acomodado. Ele escolheu cada um daqueles filmes para continuar exercitando sua beleza e se assegurar de que, nunca, mas nunca mesmo, perturbaria a psiquê branca com algo que fizesse. Nem em público, nem em particular”.
A segunda história apropriada por Yvonne Maggie está nas páginas 171 e 172:
“Em 1960, por exemplo, ele recebeu um Emmy por um especial que ele fez na televisão para a Revlon Hour, chamado “Tonight with Belafonte” [1959]. Como o show foi um sucesso de audiência, Revlon decidiu que poderia ser um bom caminho. De acordo com Belafonte, um acordo foi assinado no qual ele receberia um milhão de dólares para produzir e apresentar mais cinco shows. O segundo show, estrelado por astros brancos e negros do jazz, pop e folk, fez um sucesso estrondoso. Então, ele foi trazido de volta à realidade.
“Fui convidado para uma reunião com Charlie Revson”, ele me contou. ”Eu deveria ir sozinho? Eu mal posso esperar – estou pensando que ele quer me dar metade de sua empresa, ou algo assim. Então, estamos almoçando em sua sala de jantar particular, e ele está dizendo, “Como um judeu em Jersey City, eu entendo de opressão” – da, da, da, da – “mas temos que conversar sobre o show. Ótimas avaliações. Ótimas críticas. Muito bem. Mas estamos recebendo alguns retornos que dizem que você deveria fazê-lo só com negros. Se você pudesse só descartar as pessoas brancas…” Eu não podia acreditar. E eu disse, “Sr. Revson, deixe-me te falar uma coisa. Se você me pedisse para colocar uma saia florida e cantar mais calipso, e dançar mais, porque é isso que as pessoas brancas gostariam, eu poderia pensar. Mas o que você me pediu para fazer – não há como eu concordar. Eu não posso me ressegregar.” Ele me disse, “O. K.”. Às quatro horas daquela mesma tarde, eu recebi um cheque de oitocentos mil dólares. Charlie Revson disse, “Adeus. Você está fora do ar.”
Se Yvonne Maggie leu o livro e se lembrava vagamente da história, o mínimo que se esperava de alguém que quer se levado à sério, é voltar ao livro e ver realmente como aconteceu. Se o fez e, mesmo assim, inventou isso tudo, é mais grave ainda. Yvonne Maggie é professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, de acordo com o Perfil de seu blog. Não deveria se sujeitar a esse tipo de situação. Ela também datou a fábula inventada de “alguns anos depois de 1964″, (prestem atenção que as duas histórias acima acontecem por volta de 1960, ou antes) para nos “ensinar” que os negros norte-americanos inteligentes, depois dos Direitos Civis, não estão mais nem aí para essas lutas de negros. Não é verdade, e principalmente não é verdade em relação a Harry Belafonte (um dos mais destacados na campanha dos Direitos Civis, amigo pessoal de Luther King, Mandela, idealizador do “We are the World” e ainda na ativa, aos 84 anos de idade) e Henry Louis Gates Jr., ativista pelas ações afirmativas nas universidades estadunidenses. Se Yvonne Maggie tivesse se dado ao trabalho de descer do alto de sua cátedra, poderia ter facilmente se informado da opinião do professor Gates, antes de usá-lo. Nesse vídeo, por exemplo, onde ele diz que a única razão de ter tanta gente (refere-se aos negros, em uma igreja negra) conseguindo se virar bem, é por causa do movimento dos Direitos Civis “E” das ações afirmativas. E continua:“Sem ações afirmativas nós nunca teríamos sido capazes de integrar as historicamente racistas e brancas instituições da sociedade americana… A primeira pergunta fundamental à qual temos que nos dedicar é como proteger, preservar e expandir as ações afirmativas. (…) Eu consegui ir para Yale University porque eles estavam tentando se diversificar. Eles estavam querendo que as classes se parecessem mais com a América. (fala de como era na faculdade e de sua vida profissional depois de se formar) Cada uma dessas coisas dessas coisas foi propiciada, foi tornada possível, pela existência de ações afirmativas. Isso não significa que eu não era qualificado, isso quis dizer que, por causa do racismo, a mim nunca teria sido permitido competir num terreno mais ou menos nivelado com garotos e garotas brancos. E para mim, para alguém que se beneficiou tanto das oportunidades das ações afirmativas, plantar-me no portão e tentar manter outros negros do lado de fora seria ser tão hipócrita quanto Clarence Thomas”. Talvez Harvard, que Yvonne Maggie faz questão de citar para conferir mais autoridade ao boneco de marionete que inventou, não teria Henry Louis Gates se ele não tivesse sido beneficiado por algo que ela o coloca para combater, fazendo-o passar pelo hipócrita que ele não é e não quer ser. É ofensivo o que Yvonne Maggie fez ao trabalho e à vida dos dois, principalmente tendo o professor Gates, relativamente rico e conhecido, também presidente do Instituto W.E.B. Du Bois, passado recentemente por essa traumática e vexatória situação de racismo. É intelectualmente desonesto e deveria ser vergonhoso.
Esse não é o único problema com o texto de Yvonne Maggie. Tente encontrar os outros na rasa análise que ela faz sobre as resoluções da Suprema Corte Norte-Americana (para facilitar, deixo esse vídeo), com o contexto em que ela fala de Rosa Parks, com a data sobre as leis segregacionistas nos Estados Unidos, com a afirmação de que o Brasil não teve leis segregacionistas, com a frase “Neste julgamento que se avizinha apenas duas vozes estarão defendendo a posição de Rosa Parks“. Rosa Parks é patrona de um prêmio da Associação Americana para a Ação Afirmativa, fundada em 1974 e que, “se opõe veementemente às ações estaduais e federais que poderiam eliminar programas de ações afirmativas que proporcionam acesso igualitário e justiça para as minorias e mulheres em emprego, educação e oportunidade econômica.” Yvonne Maggie decidiu que Rosa Parks, ícone e precursora das ações afirmativas norte-americanas, era contra as cotas, e que só duas vozes estariam lá para defendê-la. Parece-me que foi apenas falta de interesse em se inscrever, como mostra o processo. Interessante também é o fato de ela usar como mote a foto de Barack Obama, deixando de informar que tanto ele quanto Michelle Obama foram beneficiários de ações afirmativas nas universidades. No texto seguinte, Separados legalmente (Publicado no jornal O Globo de 1º de maio de 2012, caderno Opinião, p.7), também dá para brincar de “jogo dos sete erros”. Tente você também. Sugiro começar lá no final, quando ela diz que o Brasil rasgou a Carta da ONU, depois de ler esse comunicado oficial da ONU, emitido seis dias antes de Yvonne publicar seu artigo. Ela também estava presente no julgamento do STF, e seria interessante comparar o que ela viu e ouviu, com os que aconteceu nos dias 25/04 e 26/04/2012. Com os textos do geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli também dá para fazer o mesmo exercício (principalmente nos que ele fala de Martin Luther King e Frederick Douglas), como já nos mostrou o doutor em Antropologia Kabenguele Munanga, mas hoje quero tratar de outra coisa sobre ele.
A solidão do negro – Infelizmente tenho que concordar que associar seu nome ao do senador Demóstenes Torres é golpe baixo. Então, por favor, considere apenas a relação com esse assunto, que eu faria mesmo se o senador não tivesse caído em desgraça pública. Mas foi com Demóstenes Torres que essa história começou, quando o partido dele resolveu entrar com a ação questionando a constitucionalidade das cotas. Demétrio Magnoli parece admirá-lo por isso, e declarou à revista Istoé, que elegeu Demóstenes como uma das personalidades brasileiras mais influentes: “Demóstenes não é mais um comerciante num mercado em que se trafica influência em troca de cargos e privilégios. Ele tem princípios e convicções. Foi o primeiro parlamentar graduado a erguer a voz contra as cotas nas universidades”. Para Demétrio Magnoli, erguer a voz contra as contas é prova de princípios.
Em março de 2010 foram realizadas audiências públicas no STF (Supremo Tribunal Federal), onde foram ouvidos vários depoimentos contra e a favor das cotas, com a finalidade subsidiar os ministros na decisão que foi tomada apenas agora, em 26/04. Os vídeos estão todos aqui, mas o que me interessa é a fala do senador Demóstenes, nesse video à partir de 32’55″. No dia seguinte, a fala de Demóstenes teve grande repercussão na imprensa, como esse artigo, e Demétrio Magnoli logo saiu em sua defesa, provando. Assim como Demóstenes, Demétrio entende muito pouco de escravidão africana, o que dá para perceber pela bibliografia de seu livro, Uma gota de Sangue, que a Veja chegou a chamar de“um esforço de pesquisa histórica monumental”. Faltou esforço, claro, porque a pesquisa de Demétrio passou longe das particularidades dos diversos modelos de “escravidão” africana, que nada tinham a ver com o nosso modelo de escravidão colonial. A leitura de um livro como Slavery in Africa – Historical and anthropological perspectives poderia ter evitado essa falha bastante grave. Demétrio também se acha habilitado para falar de movimento sanitarista ignorando a eugenia nada inocente do médico Renato Khel, patrono da cadeira número um da Academia Brasileira de Filosofia. Demétrio Magnoli tem a cara de pau de dizer que “O Brasil não tem tradição de estabelecer distinções entre os imigrantes“, mostrando que passou longe de livros fundamentais como “Negotiating National Identity – Immigrants, Minorities, and the Struggle for ethnicity in Brazil”, ou “Another Arabesque – Syrian-Lebanese Ethnicity in neoliberal Brazil“, entre vários outros que tratam do assunto.
É bastante falha a formação de Demétrio Magnoli sobre um assunto em que ele se considera especialista, recebendo grande espaço em jornais, rádio e TVs. Mas, mais falha ainda, parece ser sua memória. Parei de levá-lo depois de uma entrevista no programa Roda Viva. Destaco aqui o Bloco 4, à partir de 1’55″, quando o jornalista Delmo Moreira diz: “Eu li um artigo do Demétrio em que ele dizia que a escravidão no Brasil tinha sido, entre aspas, você colocava, um sistema democrático, porque mulatos também tinham sido donos de negros, como se a questão fosse essa. A questão é que não havia brancos escravos, e não que negro também não pudesse escravizar”. Aos 4’9″ Demétrio o interpela: “O Delmo leu mas não viu o contexto. Eu não falei que a escravidão no Brasil era democrática. Que frase horrível para se atribuir pra alguém, né?”, e continua “explicando” o que tinha dito/não dito, elevando a grosseria e a arrogância a esportes olímpicos. Procurei a entrevista e não encontrei; mas caí nesse vídeo, e acredito que Delmo pode ter se confundido de mídia. Mesmo que não, está lá, em 1’50″, a frase de Demétrio, com toda sua horrorosidade e sem contexto algum: “A escravidão não foi um fato racial. Foi um fato econômico, do capitalismo mercantil, e foi bastante democrática, no seguinte sentido, num sentido bem específico: se você tiver dinheiro, você pode comprar um escravo, mesmo se você foi escravo. Ex-escravos compraram escravos”.
Mas é sobre o Bloco 3 que podemos fazer as observações mais interessantes e significativas, principalmente à partir de 10’10″, quando Paulo Lins introduz as questões raciais. Por volta de 17’56″, Demétrio o ignora ostensivamente e lhe vira a cara, para escutar Marília Gabriela, aproveitando para lhe chamar a atenção aos 18’14″. Marília Gabriela então diz:“Eu não sei mais como me portar em relação a essa causa porque chamar alguém de negro… Ah, Fulano é negro… Já fui corrigida uma vez: “Olha, não diga desse jeito que nós não gostamos”. Então… chamar de preto não é… eu não sei… quer dizer… tudo… esse assunto… eu só tô fazendo… tô sendo superficial, tô sendo quase irresponsável de falar dessa maneira, mas é só pra dizer que a… o assunto é tão delicado, é tão delicado, e é tão problemático, é tão ainda…. que o politicamente correto ainda num, num, num… concluiu isso tudo”. O importante aqui é o visível desconforto de Marília Gabriela ao tratar do assunto, bastante comum na maioria das pessoas brancos, principalmente quando na presença de um negro. Outra coisa que não podemos deixar de notar é que, apesar de já ter ouvido de algum negro a maneira como ele/ela gostaria de ser tratado, ela diz que continua sem saber como se portar. No vídeo, percebemos que a tensão continua crescendo entre Paulo Lins e Demétrio Magnoli, que o provoca através de olhares e risos irônicos. Demétrio apresenta suas ideias como se fossem dos movimentos negros e, por volta de 21’10″ Paulo Lins tenta interferir, sendo inicialmente ignorado. Aos 21’24″ Demétrio vira para ele e diz, no jogo no qual é mestre, que é imputar suas ideias a alguém: “Isso não é uma concepção minha, isso é uma concepção dos [inteligível – sucessores? assessores?] disso. Paulo Lins parece nem saber por onde começar, depois de ouvir tanta teoria infundada apresentada como projeto vindo “do lado de lá”. Rio aqui do fato de não ter conseguido entender a quem Demétrio atribui sua teoria da conspiração, porque isso não poderia ser mais significativo de seu modo de agir. Notem que ele sempre atribui suas ideias a um inominado “vocês”, a uma entidade despersonificada, a um coletivo inexistente, a um “os adeptos de tal ou tal coisa”, afastando qualquer possibilidade de constatação ou diálogo. Nesse momento, Marília Gabriela os interrompe e diz que tem que acabar o programa, mas, antes, puxa assunto com Demétrio. Paulo Lins também a aproveita a oportunidade e os dois trocam algumas palavras, sem que Demétrio se digne a olhá-lo. Marília então sai em favor de Paulo Lins, dizendo que temos que considerar a opinião dele, contrária à de Demétrio, de que é necessária uma política de cotas deve ser considerada. A resposta de Demétrio é “Tem que considerar errado isso”, e tenta explicar seus motivos. Os dois continuam numa tentativa de se fazerem ouvidos, até que Paulo Lins consegue a atenção de Marília Gabriela ao comentar o racismo presente a olhos vistos na sociedade brasileira e dizer que, ali mesmo, naquela mesa, poderia se ver isso. Marília se assusta e pergunta “De que forma?”. Todos se calam quando Paulo Lins responde com outra pergunta: “Só eu de negro estou aqui. Por quê?” O silêncio é constrangedor, principalmente porque logo em seguida percebemos que, além de não terem entendido a pergunta, eles não têm a menor ideia do que Paulo Lins está falando. Ele insiste: “Me responde isso”. Demétrio começa a responder, Marília se ofende (“Não, você desculpe, Paulo, me desculpe…”) e cria-se uma enorme confusão até que Paulo Lins percebe que terá que desenhar. Não passou nem pela cabeça daquelas pessoas que ele estava comentando que só ele de negro estava ali, naquela bancada, enquanto que outros negros e pardos, que não tinham conseguido passar pelo filtro do racismo, não ocupavam posições de destaque no Brasil. O mais interessante ainda é que ele desenha, mostra o racismo estrutural que Demétrio tentou negar o tempo todo, e mesmo assim ninguém entende, ninguém ouve. A pergunta de Paulo Lins era: “SÓ eu de negro estou aqui; por quê?”
O “SÓ” é a chave da pergunta, e todos a ignoraram. Demétrio tenta lhe “dar uma lição de moral” contando uma historinha para ensiná-lo a deixar de ser negro e ser “brasileiro”, assim como Marília Gabriela, que encerra nervosa: “Então ficou claro para você (como se fosse Paulo Lins quem não estivesse entendendo) que, pela sua experiência de vida, HOJE, você era necessário aqui? E, com licença, o que não elimina que eu convide outras pessoas… é.. ahm… o que eu vou ter que qualificar, ou classificar de alguma maneira e vou incorrer no… no.. no politicamente incorreto… Uma loucura!” Com uma paciência infinita, Paulo Lins ainda tenta mais uma vez. Marília não deixa: “Peraí, um minutinho, deixa eu acabar.” E acaba. Quando volta o quarto bloco, Demétrio Magnoli comenta as intervenções de todos os outros entrevistados. Ignora a de Paulo Lins. Assim como o Brasil tem ignorado o que dizem e pensam seus intelectuais negros. Destaquei o HOJE ali em cima, na frase da Marília, porque seria interessante saber: quantos negros já foram lembrados pela produção do Roda Viva quando os assuntos eram outros, que não assuntos de negros? Paulo Lins estava ali, naquele dia – HOJE – porque tocariam em assuntos de negros e ficaria chato não ter algum negro compondo a mesa? Se não foram muitos os entrevistados ou entrevistadores negros que já passaram pelo programa, será que um pouquinho de inclusão e diversidade não traria perguntas e interesses diferentes ao programa, baseados em experiência de vida? Por exemplo: vocês acham que algum daqueles entrevistadores brancos faria a pergunta: “Por que SÓ temos o Paulo Lins de negro aqui?” Ou, ele não estando lá, e sendo todos brancos para tratar daquele ou de outro assunto qualquer, alguém perguntaria ou já se perguntou: “Por que só nós, os brancos, estamos aqui?” Essa é uma pergunta que, aliás, acho que nunca deve ter nem passado pela cabeça de muitos que são contra as cotas, em ambientes mais elitizados como restaurantes, cinemas, teatros, shoppings e universidades. Questão de costume. Naturalização provocada pelo racismo estrutural. Questão de falta de experiência de vida: pouquíssima chance de conviver com um negro que esse não estivesse em condições subalternas.
A tal da liberdade de expressar opinião — A questão de não entender ou não levar em consideração o que fala um negro (ou fazê-lo de boneco de marionete,quando lhes convêm) é emblemática no posicionamento dos que estão na mídia contra as cotas. Ali Kamel, por exemplo, no seu livro “Não somos racistas”, dá voz à importante intelectual e ativista negra, doutora em filosofia da educação, Sueli Carneiro, para que ela o ajude a atacar Fernando Henrique Cardoso quando este se diz mulato. Tenho vontade, mas não tenho coragem, de voltar ao livro para saber se isso acontece mais vezes. Para saber se há, e quantos há, intelectuais negros com voz e posicionamento próprios, mas não consigo passar do primeiro parágrafo: ”Foi um movimento lento. Surgiu na academia, entre alguns sociólogos na década de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo até se tornar política oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalístico diário, quando me dei conta do fenômeno levei um susto. Mais uma vez tive a prova de que os grandes estragos começam assim: no início, não se dá atenção, acreditando-se que as convicções em contrário são tão grandes e arraigadas que o mal não progredirá. Quando acordamos, leva-se o susto. Eu levei. E, imagino, muitos brasileiros devem ter se assutado: quer dizer então que somos um povo racista?” (pág. 17)
Ali Kamel nos desinforma que o movimento de combate ao racismo e suas consequências (ou será que se refere ao movimento negro? ou ao movimento do mal?), no Brasil,“surgiu na academia, entre alguns sociólogos na década de 1950″. Se algum dia ele conseguir deixar o lugar privilegiado de onde exerce e tenta universalizar suas convicções tão grandes e arraigadas, e puder entender o quanto essa frase é moldada pelo racismo que tanto o assustou, também entenderia que o “movimento”, na verdade, foi imensamente mais lento do que imagina. Os sociólogos que cita, na década de 1950, apenas conseguiram captar os ecos da longuíssima luta que já vinha sendo travada pelos negros – e alguns brancos – brasileiros desde muito antes da escravidão. Se Kamel tivesse pesquisado o que seus colegas jornalistas negros já diziam no início do século XIX, pouparia-se da vergonha de apresentar agora, quase dois séculos depois, como a sacada do século, que a população negra e pobre deve é reivindicar educação de qualidade, pois assim todo o resto se resolve sozinho. Se estivesse se interessado em procurar a origem do “movimento”, Kamel poderia encontrá-lo, talvez até antes mas, com certeza, nos jornais O Homem de Cor, O Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Lafuente, Crioulinho, todos surgidos na primeira metade do século XIX. Interessante sobre esses jornais é que alguns deles tiveram suas autorias questionadas e atribuídas a homens brancos, “num esforço de ignorar a participação dos “homens de cor” no cotidiano político da cidade”, como nos conta Ana Flávia Magalhães Pinto no livro “Imprensa negra no Brasil do século XIX”. Segundo a apresentação, “experiências cotidianas e variadas de enfrentamento do racismo, a criação de redes de sociabilidade e o uso de instrumentos legais para promover a cidadania foram registradas nas páginas de jornais assinados por “homens de cor” e dirigidos a eles”. Kamel se assustaria, com certeza, ao ler o que, em 1833, o jornal O Homem de Cor lutava contra uma ação do governo que queria instituir a obrigatoriedade da declaração de cor nas listas dos cidadãos (pág. 44), e clamava para que a Constituição fosse “uma realidade para todos os brasileiros, sem distinção de classes”. Irônico e interessante que, naquela época, “classe” era sinônimo de “raça”, e os homens negros diziam pertencer à classe dos homens de cor. Se conhecesse esses jornais, Kamel se assustaria também com a riqueza do cotidiano e das ideias, às vezes bastante contraditórias, de homens negros e pardos livres em uma sociedade escravagista. Isso é história, isso é movimento, muito anterior a 1950. Se o reconhecesse, Kamel saberia que esses homens já lutavam por educação e acreditavam que nela estava o caminho para a socialização. Esses homens que Kamel e tantos outros ignoram discutiram escravidão, liberdade, nação, identidade, mestiçagem, família, educação, ética, cultura, política, trabalho, mundo, guerra etc, e sempre com a boa vontade de esperar as coisas se ajeitarem, sempre acreditando em promessas que, de um meio ou de outro, haveria de lhes tornar cidadãos.
Tudo isso que está sendo defendido hoje pelos que são contra as cotas, esses homens da classe de cor dos séculos XIX e XX também já defenderam, em vários momentos, coagidos ou de livre vontade. Quando livres, porque os escravos eram proibidos de frequentar a escola pública, brigaram por educação de qualidade e, quando tinham a oportunidade de estudar, agarravam-se a ela como a única esperança de um futuro mais digno. Esperança que morreu frente ao descaso, a promessas nunca cumpridas, à constatação de que seus sonhos de serem cidadãos plenos e de direito, iguais a todos os outros como sempre pregou a constituição, nunca esteve nos planos de quem os governava. Uma boa ideia dessa longa luta dos negros por uma educação pública de qualidade está no livro “A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil”. Na página 48 há um argumento que, para mim, tem a mesma raiz dos argumentos dos que dizem que, antes de brigar por universidade o negro deveria brigar por educação básica, ou a de que os estudantes cotistas não dariam conta de acompanhar os cursos ou não se tornariam bons profissionais. A frase é do deputado e escritor José de Alencar, em 1870, pregando contra a lei do ventre livre: “E como libertar o cativo sem antes educá-lo? Não senhores: é preciso esclarecer a inteligência embotada, elevar a consciência humilhada para que um dia, no momento de conceder-lhes a liberdade, possamos dizer: – vós sois homens, sois cidadãos. Nós vos remimos não só do cativeiro, como da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade, em que jazeis!”
Quem quiser avançar mais um pouco mais e entender como se deu a expansão do sistema público de ensino no Brasil durante os anos 1917 e 1945, deve ler “Diploma de brancura – Política social e racial no Brasil, 1917-1945 . Nele entendemos que, não apenas os alunos, mas também professores negros, foram discriminados na implantação de um sistema do ensino voltado para a criação de um modelo de “homem brasileiro”, que era branco. Basta lembrar que a reforma do ensino público brasileiro foi coordenada não por educadores, mas por médicos, que estavam envolvidos no movimento eugenista. Deste livro, destaco a parte citada nesse importante artigo artigo de Pádua Fernandes: “No Rio, durante a era Vargas, a eugenia não estava relegada a conferências profissionais e remotos laboratórios, mas era um esforço coletivo, participativo. […] No sistema escolar, os eugenistas colocaram suas ideias em prática pela primeira vez, aprendendo e executando os programas para aperfeiçoar a raça. Suas pesquisas mostravam aquilo em que queriam acreditar: que alunos brancos, ricos, eram mais qualificados e isso podia ser mensurado. Nos casos em que um teste revelava o oposto, o pesquisador se esforçava para explicar por que os testes ou os pesquisados haviam-se desviado dos verdadeiros resultados, obtidos nas condições que se sabia serem verdadeiras. [p. 92]
Ao ignorar a luta secular dos movimentos negros (que também são compostos por brancos, é bom que se esclareça) por uma educação pública de qualidade, Ali Kamel quer fazer com que eles também esqueçam de quase dois séculos de promessas não cumpridas e, principalmente, da invisibilidade demonstrada no primeiro parágrafo de seu livro. Ao só reconhecer a história a partir do envolvimento, ou reconhecimento, dos sociólogos brancos, na década de 1950, Ali Kamel repete o comportamento que alguns desses sociólogos tiveram com importantes lideranças e intelectuais negros: trata-os apenas como como informantes ou estatísticas. A história é longa e pode ser lida com mais detalhes nos livros “Terms of inclusion – Black intellectuals in Twentieth-Century Brazil“(páginas 217 a 219 ) e O sortilégio da cor (págs. 262 a 274). Resumindo: Alberto Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento realizaram, pelo TEN , o 1º Congresso do Negro Brasileiro, reunindo intelectuais e ativistas dos movimentos negros, lideranças, pessoas da comunidade e acadêmicos brancos, para discutir problemas reais e soluções práticas para a inserção do negro na sociedade. Uma das reivindicações era que a academia parasse de usar os negros apenas como informantes, como “negro-espetáculo”, e no final do congresso uma ata foi escrita decidindo que pediriam ajuda à UNESCO para que fossem inseridos, como produtores de conhecimento, no projeto que já contemplava a academia (todos brancos) e que tentava mostrar o Brasil do pós-guerra como um grande exemplo de democracia racial a ser seguido, ignorando as pesquisas que demonstravam a persistência do racismo. Os organizadores do Congresso se assustaram e repudiaram o ato de “paternalismo” quando os acadêmicos convidados apresentaram uma segunda ata, com a visão apenas deles e não de todos os participantes, e que nada tinha a ver com a oficial. A segunda ata não foi aceita e, fingindo que concordavam com a primeira e liderados pelo sociólogo Luiz Aguiar Costa Pinto, os acadêmicos procuraram a UNESCO e conseguiram fazer com que eles, e não os intelectuais negros, realizassem o trabalho no Rio de Janeiro, que resultou no livro “O negro no Rio de Janeiro”, de Costa Pinto. Quando o livro saiu, em 1953, Abdias e Guerreiro Ramos, em jornais e em correpondência à UNESCO, acusaram Costa Pinto de plágio e de ter distorcido informações. Ele tinha se apropriado, sem dar crédito, de estudos apresentados durante o Congresso, tratando-os como mero material de pesquisa e não como produção de intelectuais negros. Costa Pinto teve acesso às atas do Congresso, tendo sumido com parte delas, depois te terem sido emprestadas em boa fé por Abdias Nascimento. A resposta de Costa Pinto às acusações, publicada em um artigo n’O Jornal, importante diário carioca da época, foi que era uma ameaça às ciências sociais que um pesquisador pudesse “ver como o seu material, ou parte dele, reage às conclusões de um estudo conduzido sobre ele. Duvido que haja biologista que depois de estudar, digamos, um micróbio, tenha visto esse micróbio tomar da penae vir a público escrever sandices a respeito do estudo do qual ele participou como material de laboratório”.
Pois é exatamente assim que boa parte dos anticotistas com amplo espaço na grande mídia trata os intelectuais negros e/ou suas opiniões: como material de laboratório. Há certo desinteresse pelo material nacional (exceto quando vem em forma de números), com clara preferência por material importado (Nelson Mandela, Henry Louis Gates, Harry Belafonte, Barack Obama), sendo melhor ainda se já estiver morto (Martin Luther King, Frederick Douglas, Rosa Parks), pois o perigo de eles “se rebelarem” é inexistente. Paulo Lins, como vimos no vídeo acima, se rebelou contra Demétrio, e a opinião de Demétrio é que a opinião de Paulo Lins deve ser considerada errada. Essa atitude revela bastante da sua porção biologista, sendo a Biologia ciência à qual ele é um dos que mais recorre, como se precisasse recordar constantemente que raça biológica não existe. Todos já sabemos disso; os negros, inclusive, quando muitos brancos afirmavam o contrário. Racismo é um problema social, não biológico; e é no campo das ciências sociais, e não biológicas, que ele deve ser combatido. Ninguém solicita exame de DNA para discriminar ninguém. Então, como é mesmo que essa série de pesquisas mostrando quem tem tais e tais porcentagens de ascendência africana, indígena ou européia podem provar a ausência de racismo na população brasileira? É sério que querem discutir/definir quem somos nós, brasileiros, através da genética?
Antes de contar uma última história que, pra mim, é o perfeito exemplo da cruzada de um dos principais grupos de comunicação contra as cotas, saliento a participação e a importância de vozes dissonantes dentro dessa velha mídia. São jornalistas que, contrariando as posições das revistas, das TVs e dos jornais nos quais trabalham, dão-se à liberdade e à dignidade de expressarem o que pensam e defenderem as cotas. Correndo o risco de me esquecer de alguém, saúdo Paulo Moreira Leite (que bom que ele mudou de ideia!), Miriam Leitão, Heraldo Pereira e Élio Gaspari. Eles fazem a maior diferença, como dá para perceber logo a seguir.
Em 2006, a situação já estava tão escancarada que o ombudsman da Folha escreveu em sua coluna que o jornal não estava tratando tratando de maneira imparcial a discussão sobre cotas e políticas afirmativas. O manifesto anticotas tinha sido publicado na íntegra pelo jornal, ao contrário do manifesto pró-cotas. Entre os vários estudos que já trataram do assunto, recomendo a tese “Ações afirmativas e cotas na mídia: a construção de fronteiras simbólicas“, na qual Zilda Martins Barbosa analisa os textos publicados nos cadernos de opinião dos jornais Folha de São Paulo, O Globo e O Dia, segundo ela para “compreender a relação da mídia impressa com a população negra como um exercício de resistência à mudança, de caráter passional e maniqueísta. A despeito da retórica do dissenso midiático contra as cotas, estas já são uma realidade, vislumbradas como um contradiscurso”. É interessante essa ideia, de as cotas serem o contradiscurso. Outro material que também traz dados importantes é essa pesquisa do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT e do Observatório Brasileiro de Mídia: A Mídia Impressa no Brasil e a Agenda da Promoção da Igualdade Racial . Os assuntos pesquisados foram ações afirmativas, cotas, Estatuto da Igualdade Racial e demarcação de terras quilombolas, (mas aqui ficarei apenas com as cotas), reunindo 1.093 matérias publicadas durantes os anos de 2001 e 2008 nos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e o Globo, e nas revistas Veja, Época, e Istoé. É muita informação, e vale a pena tanto analisar os números quanto os argumentos, e perceber como estes vão se modificando, ou não, conforme vão surgindo as informações que os derrubam. Notem também que 100% das matérias – artigos, colunas, entrevistas e reportagens – das matérias da Veja e 100% dos textos opinativos – artigos e editoriais – do O Estado de São Paulo são contra as cotas. Vou me ater aqui ao jornal O Globo, um dos mais ativos nessa cruzada, e destaco uma informação de cada um dos links acima:
– os três jornais publicaram 32 editoriais sobre as cotas, tendo O Globo publicado 25, com argumentos que disseminavam as seguintes ideias: ações afirmativas/cota geram polêmica ou promovem racismo e segregação (32%), o mais correto é educar e não criar cota (24%), cotas baixarão o nível dos cursos (16%), critérios para cotas deveriam ser socioeconômicos e não raciais (12%), cotas subvertem a meritocracia (8%), cotas são equívoco, mas estimulam debate (4%) e critério da autodeclaração é questionável (4%). (página 14 da pesquisa)
– No caderno Opinião, de O Globo, 20 artigos foram sobre cotas, sendo que Ali Kamel (com sete artigos) e Demétrio Magnoli (com seis) dominam o espaço, com firme posicionamento contra. “Os outros sete artigos estão divididos entre os que são favoráveis às políticas públicas de ações afirmativas e posições neutras ou críticas com relação à medida.” (págs. 86 a 100 da tese)
Sabendo da discussão “viciada” que tem ocupado a velha mídia brasileira, e o quão desastroso seria um retrocesso na política de cotas para jovens com perfis, esperanças e dificuldades que eles conhecem tão bem, a ONG Omi-Dudú lançou a campanha Afirme-se. Procurada, a agência Propeg desenvolveu spots para rádio e uma peça publicitária que seria veiculada nos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, A Tarde e O Globo. A agência negociou os espaços com os veículos, que cobraram, respectivamente, R$ 38.160,00, R$ 37.607,23, R$ 36.048,48 e R$ 54.163,20, valores arrecadados através de doações. A peça seria veiculada no dia 3 de março de 2010, para coincidir com o julgamento da constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, que estava marcado para os dias 3, 4 e 5. Dois dias antes de o material ser publicado no O Globo, a Propeg avisou à ONG que o anúncio teve que ser submetido à direção editorial do jornal (provavelmente aquela ali acima, dos editoriais contra as cotas), e que ele tinha sido classificado como “expressão de opinião”, elevando o valor cobrado para R$ 712.608,00. Segundo matéria do Observatório da Imprensa, no site do Jornal O Globo, o acréscimo para publicação de “expressão de opinião” é de 30% a 70%. No caso, O Globo estava cobrando 1.300% acima do preço negociado para veicular uma opinião diferente da sua. No dia 08/03/2010, a campanha Afirme-se! entrou com representação contra o jornal no Ministério Público do Rio de Janeiro. Estou em contato com ONG para saber se há novidades e se podemos ajudar, e assim que tiver notícias, se necessário, atualizo esse texto. Seria importante acompanharmos esse processo e e ajudarmos a denunciar mais esse abuso.
Aparecer em rede nacional, na novela Duas Caras, fazendo propaganda de um livro que estampa na capa os dizeres “Não somos racistas”, também não poderia ser classificado de divulgação de “expressão de opinião”? Será que, seguindo a política da direção editorial do grupo, a atriz Juliana Alves recebeu 1.300% a mais pela ação publicitária?
Ana Maria Gonçalves, escritora, negra, autora de Um defeito de cor.
Fonte: Revista Fórum