A Anastácia fez por conta própria a sua própria revolução. Ela não precisou ler os “Prolegômenos para uma ontologia do ser social”, do György Lukács; muito menos “Crítica do programa de Gotha”, do Karl Marx, para ter a consciência política de uma pessoa potencialmente revolucionária. Foi a sua própria condição existencial e ancestral que a fez despertar para a luta.
Primeiro, ela começou pondo em prática o poema “Não vou mais lavar os pratos”, da poeta negra Cristiane Sobral. Começou, ali, nos quintais – cujas lavanderias eram exclusivamente seu lugar de visibilidade – suas primeiras revoltas. Anastácia enfrentou, em sua solitude, todas as Donas Bentas que insistiam em levar suas roupas sujas – meladas de “drama bergman” – para ela quarar. Até o dia em que ela disse “ você pra mim, é problema seu” – ela bradou, numa quarta de Xangô, que o eco foi em ritmo de carimbó remixado pelo paraense Felipe Cordeiro.
Não bastasse a tamanha impulsividade de reviravoltas, a Anastácia foi acertar as contas com quem deitou, desfrutou, e não a amou – por vergonha de sua cor. Ela se revestiu da armadura doce e profunda da mamãe Oxum, e foi à guerra. Depurou todas as vivências em que foi colocada somente como fetiche sexual para casal branco se regozijar do ménage, e que após o coito, pedia que ela saísse para
não afetar a monogamia.
A Anastácia, hoje, aprendeu a escrever e a falar. E não foi na escola, na família e no terreiro que ela ganhou esse aprendizado. Foi nas incontáveis vezes em que ela bateu cabeça, no seu quartinho sagrado, para os seus orixás. Foi nos dolorosos choros solitários em que rezava para a sua preta velha ser colo e consolo em sua aflição. Nos banhos de ervas, escalda-pés e banhos de assentos, que ela foi cicatrizando as feridas que a vida lhe causava. Ela aprendeu também que a sua escrevivência é cura, e quer ensinar a todas as meninas negras que elas podem se transformar em “Fêmea-Fênix”, como diz Conceição Evaristo.
A Anastácia nunca desistiu de lutar e sonhar. Ela sabe que carrega em seu corpo negro marcado o que há de mais precioso e delicado: a vida. E não houve um dia se quer que não tentaram te matar. Mas em todas as mortes, ela sobreviveu. Aprendeu com as suas ancestrais que não se pode viver de corpo aberto. Assim, todos os dias, ao acordar, ela saúda seu Orí, despacha a água na rua, e põe em seus braços as espadas de São Jorge, para lhe valer de mais uma batalha diária de sobrevivência e r.existência.
Sua história não será contada até que ela mesma decida contar. E assim o faz. Anastácia é professora, e muito em breve será a primeira Doutora negra de uma família preta que nunca imaginou atingir tamanho patamar de reificação histórica.
Anastácia sabe que sua revolução é manifesto. Então, ela se manifesta em espírito e em carne para quem bem merece te conhecer. E não será mais no sítio racista do Monteiro Lobato, mas sim nos Bantos, Jongos, Ketu, Jejê, Angolas, e no seu próprio Quilombo.
Anastácia se tornou um assentamento a partir do momento em que ela se deu o respeito. E respeita a sua ancestralidade. Eu cultuo Anastácia dentro de mim porque ela sou eu.