Achille Mbembe é uma referência académica no estudo do pós-colonialismo, um teórico erudito e pensador das grandes questões da história e da política africana – apesar de, ele próprio, não se definir como “teórico do pós-colonialismo”. Nascido nos Camarões em 1957, Mbembe é professor de História e Ciência Política na Universidade Duke (Virgínia, Estados Unidos) e na Universidade Witswatervand(Joanesburgo, África do Sul), além de investigador no Wits Institute for Social and Economic Research(WISER) desta mesma Universidade.
Por David Avila no Deus me Livro
Antes desta nova edição da Antígona, o leitor pode já ter lido Mbembe nas páginas da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, ou quiçá tenha tido oportunidade de o ver no Instituto Goethe, em Lisboa, em Fevereiro de 2013, quando participou na conferência “Rethinking Cosmopolitanism and the Entanglement of Africa and Europe”. Para quem procure aprofundar a leitura de Mbembe, existem outros livros editados em Portugal, como “Sair da grande noite” ou “África Insubmissa”.
Em “Crítica da razão negra“ (Antígona, 2014), o seu livro mais recente, o autor elabora sobre o conceito de “Negro”, sobre a evolução do pensamento racial europeu que o origina e sobre as máscaras usadas para o cobrir com um manto de invisibilidade. O texto é profundamente teórico, permeado por uma filosofia política latente: além de ser um académico de referência, Mbembe é também um académico comprometido com o tema.
Mbembe começa por fazer uma transposição entre o conceito de “Negro” como imagem de uma existência subalterna apensa a uma humanidade castrada, para uma condição universal à qual todos estaremos sujeitos no actual panorama de crise instituída. Assim, todos e todas viríamos a ser “Negros”, arrastados pela torrente do neoliberalismo e por novos modelos de exploração e submissão. A universalização da condição do “Negro” seria «simultânea com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas esclavagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração.»
A esta ideia está subjacente uma outra: a do declínio da Europa no Mundo e a consequente deslocação do centro de gravidade do Mundo para fora desta. A ideia da Europa como centro já é contestada há muito (sobretudo) nas ciências sociais, sendo de referir Dipesh Chakrabarty e a sua obra “Provincializing Europe“ (citada por Mbembe), em que o autor debate o lugar mítico da Europa como suposto berço da modernidade e a sua influência nos momentos de transição para o capitalismo.
Coloca-se então aqui esta “nova” questão: que impacto terá a eminente subalternização da Europa para o racismo e para o pensamento e conceptualização da raça? Responde Mbembe afirmando que «(…) os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas.» O autor mantém sempre presente a análise da condição económica na percepção da questão da raça, vendo-as como indissociáveis: a subjugação do “Negro” e a exploração capitalista.
O autor aborda o racismo de frente e sem fazer concessões. Lança críticas tanto às diversas correntes ideológicas legitimadoras do colonialismo, como a certos movimentos intelectuais e artísticos “africanistas” (de forma mais explícita e elaborada a Marcus Garvey e Aimé Cesáire). Transporta-nos para o plano crítico em torno da raça e do racismo e dos discursos que o renovam continuamente: «ao reduzir o ser vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do Negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura, a da loucura codificada.»
Num discurso inconformado e por vezes provocatório, Mbembe esboça o percurso de criação do conceito de “Negro”, idealizado pelo Ocidente como uma fábula plena de exotismo, refinada com elementos carnais de pulsão sexual e sensualidade. Um imaginário em que o corpo, a fruição, o gozo desempenham papéis preponderantes, recheado de referências ao “natural” em bruto, a sentimentos primários e a instintos animais. Um imaginário que tanto fascinava como originava repúdio e repulsa.
Ao longo do livro providencia-se um enquadramento histórico do conceito do “Negro” e das suas vertentes: o corpo, a sua identidade, o seu trabalho, o seu ser mais íntimo (desde a perda de identidade na plantação agrícola americana à ausência de direitos na colónia africana). Mbembe descreve ainda como, desde a plantação à colónia, o conceito de escravo se acaba por fundir com o de “Negro”, até estes se tornarem sobreponíveis. Dentro e fora do capitalismo, o “Negro” passa de homem-metal (exploração mineira em África) a homem-mercadoria (tráfico negreiro de escravos) e, daí, a homem-moeda (como produto de troca no capitalismo).
O racismo ter-se-ia assim desenvolvido com modelo legitimador da opressão e da exploração, ao serviço do capitalismo, o qual necessitava de pressupostos raciais para subsistir: «“Negro” é portanto a alcunha, a túnica com a qual outros me disfarçaram e na qual me tentam encerrar.» Na tensão dialética daí emergente adviria a construção da sua identidade, na qual Mbembe vislumbra 3 momentos: a atribuição (do nome “Negro”), a interiorização e a subversão do próprio conceito.
Transversal aos vários capítulos do livro é a análise e as diversas referências do autor à obra e pensamento de Franz Fanon, ao qual se aproxima em diversos momentos, inclusive no capítulo em que comenta o conceito político de violência racista da era colonial, segundo Fanon.
Para quem procure análises mais concretas das ligações e dinâmicas em redor do tema, Mbembe pode parecer por vezes um pouco prolixo nas suas diatribes, vagueando por complexos conceitos e referências. Nada melhor por isso que o mobilizador epílogo com que termina o livro, no qual aponta alguns caminhos para um futuro «livre do peso da raça e do ressentimento.» Através da justiça, restituição e reparação, Mbembe propõe a descolonização mental da Europa. Um projeto comum e universal, de «reinvenção da comunidade.»
Para além de escritores clássicos como o já referido Franz Fanon, Achille Mbembe é atualmente, para quem queira aprofundar academicamente o tema do(s) racismo(s), um autor incontornável, não só pelo seu peso académico mas também pela sua capacidade de explorar as vertentes mais filosóficas e eruditas do tema, projectando as linhas que estruturam um pensamento crítico sólido e motivadorivador.